terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Padre de Fronteira

 Padre Alípio Servo não era Servo antes do seminário, quando ainda caçava passarinhos no pouco de folga que o pai lhe dava, depois das lidas no parreiral. No tempo do Getúlio e da guerra, quando era proibido e perigoso falar italiano, até se pensou em seguir as recomendações do comissário e mudar de nome.

O padre que vinha oficiar a missa a cada dois meses na capelinha da linha foi contrário: “Si reso Missa Latina, quae etiam Italici, propter nomen tuum debes mutare?”

Assim, tomando os devidos cuidados, o nome permaneceu Schiavo; Alípio Schiavo, embora os irmãos mais velhos o chamassem de “Vernici” por causa de uma mancha preta que ele tinha, desde o nascimento, no lado esquerdo do queixo.

Italiano só se falava em casa, e debaixo das videiras no tempo da colheita, quando se cantava baixinho: Addio mia bella, addio, l'armata se ne va e se non partissi anch'io sarebbe una viltà. E se non partissi anch'io sarebbe una viltà.

Il Duce... Ah, Il Duce!... La redenzione di tutti gli italiani nel mondo, foi o que disseram os rapazes que vieram de Caxias, numa tarde de domingo ensolarado quando estavam jogando bocha. Da linha, só o Pietro, o terceiro irmão, por ordem de nascimento, deixou-se seduzir e foi com os rapazes para Caxias.

Depois a guerra passou. Parece que o Brasil ganhou, mas que importa? É tempo de passar verderame nas parreiras. A terra ficou pouca. O pai comprou umas terras no Barracão e mandou para lá os dois mais velhos, o Genaro e o Giusepe. A irmã Adele estava com casamento marcado e ajudava pouco na lavoura, ocupada com o enxoval. Pietro, depois da guerra, se empregou como alambrador numa fazenda em São Borja, de maneira que escaceou os braços e o serviço se multiplicou para os que ficaram; ele e o pai.

Na colheita Genaro e Giusepe vinham do Barracão ajudar e traziam mais uns quatro ou cinco de lá, gente que não estava acostumada com os morros e por isso rendiam pouco.

 Pietro veio uma vez, fora da época da colheita. Falou maravilhas do campo. Terras a perder de vista, tudo plano, sem pedras e sem peraus. Lá, ele dizia, não precisa se matar na roça. Os bois se criam sozinhos. Pasto é o que não falta.

E tem serviço pra mais gente. Não é serviço pesado, mas como as fazendas são muito grandes, carece de ginetes que as percorra. Chissà se il fratello Alípio non è interessato ad andare a conoscere?

- Ma che? Questo bambino? Lui sa come lavorare sul campo con un bue, solo piantagione, raccolto.

- Só por uns tempos papá. Enquanto o serviço aqui não aperta. Para conhecer. Depois ele volta.

- Va bene, va bene!

E ele foi com a benção do pai.

As terras da fronteira eram mesmo boas. Estabeleceu-se junto com o irmão num galpão e, durante o dia, percorriam as cercas, pregando um grampo aqui, socando um palanque acolá, vez que outra traziam para a mangueira grande uma novilha com suspeita de bicheira, tarefa difícil para ele que estava ainda no aprendizado do manejo das rédeas do cavalo manso que o irmão arrajara para si.

Tudo corria bem até a chegada do “Paisano”, que se estabeleceu no galpão e por lá foi ficando. Era um homem comprido, magro, de cabeleira escorrida que se lhe cobria os ombros. Gavola e contador de causos, viera de Corrientes para se ajustar como peão da fazenda, e ali aguardava a volta do patrão, que estava em São Borja.

Foi na roda do mate, a noitinha que a confusão se deu. O paisano servia a cuia, e passava para os que chegavam do campo e se sentavam ao redor do fogo. Alípio e Pietro, recém vindos, se estabeleceram perto da porta, ainda com o suor do dia. O argentino, que havia enchido a cuia se dirigiu ao Alípio:

- Pega uno, muchacho sucio?

Pietro, sem entender, perguntou a um peão que estava ao lado:

- O que ele disse?

- Chamou teu irmão de guri sujo...

- Ma che?... Mio fratelo non è sporco!...

A briga se formou. Na confusão Pietro cortou o braço do castelhano logo abaixo do cotovelo. Vieram os apartadores e retiraram o cabeludo que ainda tentava argumentar aos gritos:

- Lo dijo “sucio” debido a la pintura en la cara...

Quando o patrão chegou, e mandou chamar o Pietro, já estava com decisão tomada:

- Mandei o clinudo prá outra banda do Uruguai. Não quero desavença na minha estância. Você fica, porque é bom nos alambrados. Nenhuma novilha minha se perdeu nos corredores nos últimos tempos. Mas despache o teu irmão de volta. Não me tem serventia.

E assim ele voltou para a serra.

Quando Genaro casou-se em Barracão, às pressas e contra a vontade dos irmãos da moça e voltou para casa, o pai decidiu que já era hora de encaminhar, a ele, Alípio, segundo o que toda familha italiana e temente a Deus deveria fazer. Mandou-o para o seminário em Garibaldi.

O tempo de estudo passou rápido. Fora ordenado padre numa cerimônia na Igreja Matriz, em que vieram os parentes.

- Padre Alípio Servo – recomendara o Frei Anacleto. Servo ficará melhor que Escravo. Servo do Senhor. Ele o marcou desde o nascimento. Servo.

O episódio de São Borja teria se perdido na memória se, depois do seminário os Capuchinhos não o tivessem mandado novamente para a fronteira, como pároco numa comunidade entre Uruguaiana e Quaraí.

Recebido com festa, já nos primeiros dias, inclinou-se gradativamente a favor das queixas dos residentes, em detrimento dos argentinos e uruguaios que atravessavam a fronteira nos domingos para abastecerem-se nas lojas e armazéns do lado de cá. O câmbio ajudava. E ficavam para a missa das 10, enchendo a igreja com seus sotaques.

- Sucio, sucio!... parecia ouvir do púlpito.

A princípio ele pregava a palavra sem distinções. Mas aos poucos, sem mesmo perceber, começou a introduzir alguns termos que não se encontravam originalmente na Bíblia, como, por exemplo, durante o sermão em que condenava o homicídio:

- "Em certa ocasião, Abel apresentou ofertas que foram agradáveis ao Senhor. Mas da oferta do seu irmão, o “castelhano” Caim, Deus não se agradou e com ciúmes, o “castelhano” Caim matou o seu irmão Abel."

O turco Mansur, dono da loja A Barateira veio a ele, certa manhã:

- Padre, Patrício... Meu loja tem prejuízo. Povo não vem comprar por causa do sermon do rio.

Dias antes tinha ensinado sobre o Êxodo:

-“ Então Moisés, tocando as águas, assim, como as águas do Uruguai, elas se abriram e seu povo passou. Mas quando os seus perseguidores estavam no meio, as águas se fecharam novamente, matando um monte de castelhanos afogados.”

As reclamações dos comerciantes chegaram até o prefeito.

- Padre, é preciso que modere os seus sermões. Eu mesmo não simpatizo com os castelhanos, desde os tempos do Solano Lopes, mas mesmo naqueles tempos eles estavam do nosso lado. E agora eles gastam bastante aqui.

- Mas eu só faço é exempleficar, para que o povo entenda...

O delegado, também procurado, tratou logo de se eximir.

- Não podemos misturar os assuntos, prefeito. Se nos metermos, os eleitores ficarão do lado do padre. E isso não será bom, a oposição vai se aproveitar.

- A saída é mandar um próprio até a Cúria. Ou melhor, eu mesmo vou.

Na Sexta-feira Santa, ainda antes da procissão, o Vigário chegou de Uruguaiana.

- Padre Alípio Servo.Vim acompanhá-lo nas cerimônias religiosas de hoje. Temos recebido reclamações das forças vivas da cidade. Consta que o senhor tem usado termos depreciativos para com os nossos irmãos castelhanos. Isso pode até gerar um incidente diplomático, além de indispor a igreja contra o estado e as autoridades. Não estou em missão oficial da igreja, mas estarei atento, no meio do povo.

A procissão transcorreu sem sustos.

Na missa das 10, o sermão foi assim:

- Estando Jesus, reunido com seus apóstolos para a ceia da Páscoa, disse: - Um de vós há de trair-me. E os apóstolos, um por um responderam: - Certamente não serei eu, Senhor.

- Mas quando chegou a vez do...

Estava prestes a dizer: “do castelhano Judas”, quando viu, no meio do povo o Vigário, observando atento e emendou-se a tempo.

- E quando chegou a vez do Apóstolo Judas, este lhe disse:

- Por supuesto que no soy yo, Señor!...

Tres dias depois recebeu uma carta do Bispo, comunicando que lhe fora designada uma nova Paróquia, em Nova Bassano.

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A todos os amigos e amigas, leitores do "Letras da Torre" que me acompanharam durante o ano que finda, desejo um Natal de renovação e alegria. Que o ano que se inicia seja rico em realizações e que possamos continuar juntos.

Estarei indo para o sul, rever minha terra, amigos e parentes. Talvez até assista à Missa do Galo na Paróquia do Padre Alípio.

Até a volta...
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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O Gaúcho Que Laçou Um Avião

 Quando contei esta história para um grupo de amigos paulista, me arrependi.

As reações foram as mais diversas, majoritariamente de incredulidade. Alguns me reprovaram com o olhar, mas sei que no íntimo queriam gritar “mentiroso!...”

Outros se entreolharam com pena, como a combinar: “é melhor não contrariar; nessa idade os sintomas poderão piorar”.

Como, no momento, eu não estava municiado de elementos comprobatórios, só me restou emudecer arrependido. Levei comigo a gana de ir à forra e ao chegar a casa me pus a pesquisar afoitamente.

Para comprovar a veracidade da história e resgatar a minha credibilidade, conto aqui hoje como a coisa se deu e cito várias fontes, dentro as quais as insuspeitas revistas Time Magazine e O Cruzeiro da época.

Foi assim:

Irineu Noal, um jovem piloto civil de 20 anos, tinha uma namorada, filha do fazendeiro Cacildo Pena Xavier. Em outras oportunidades já tinha sobrevoado a fazenda, localizada em Tronqueiras, próximo ao vilarejo Arroio do Só, interior do município gaúcho de Santa Maria, para impressionar a moça.

No dia 20 de janeiro de 1952, no entanto, sua missão era outra, bem menos galhofeira do que em vezes anteriores. A moça tinha terminado o namoro e estaria já noiva de outro.

Irineu tinha o propósito de, num primeiro momento tentar o reatamento do namoro e, se seu intento se frustrasse, devolver-lhe as cartas que ela havia lhe enviado.

Naquele domingo de tarde clara, preparou no aeroclube de Santa Maria, o teco-teco de prefixo PP-HFP batizado de “Manuel Ribas” em homenagem ao antigo prefeito da cidade (e posteriormente governador do Estado do Paraná), e rumou para a fazenda.

Lá, o peão Euclides Guterres, de 24 anos, cuidava de uma novilha no campo, quando o avião começou a fazer manobras rasantes sobre a sua cabeça. Empunhou o laço trançado de couro cru, armou a laçada e jogou para o alto. Três ou quatro vezes, errou o alvo, e o avião subia em direção às nuvens, para, em seguida fazer nova revoada, cada vez mais ousada.

Numa passagem muito baixa sobre o rebanho, o peão mirou o avião e jogou o laço, e desta vez a corda se enrolou numa hélice e foi-lhe arrancada das mãos. Por sorte do piloto a lâmina da hélice cortou o laço próximo à presilha, livrando-o de um golpe mais forte pois a outra ponta estava presa à sela sobre o cavalo.

O avião começou a trepidar e a perder altura e Noal teve que aumentar a rotação do motor para evitar a queda iminente, e conseguiu chegar ao aeroclube.

Assustado, mas já em segurança, percebeu o pedaço do laço preso ao nariz do avião. Temendo reprimendas, escondeu-o entre as vassouras que circundavam a pista. Em vão; o pessoal de terra já havia visto o laço e os danos na hélice e Noal foi obrigado a contar o acontecido.

Cinco dias depois a diretoria do aeroclube caçou a licença de Irineu Noal e obrigaram-no a pagar uma multa pelo ato, considerado uma transgressão. O prejuízo foi de 2 mil cruzeiros com a troca da hélice, que hoje se encontra exposta na loja de ferragens da família de Noal, na rua Dr. Bozano, em Santa Maria, segundo matéria do jornal “Correio do Povo” de 29 de janeiro de 2007.

O peão Euclides Guterres, depois da proeza ficou com medo de ter cometido um crime e fugiu para o mato e só voltou para a fazenda 3 dias depois, quando o patrão Cacildo Xavier foi buscá-lo.

O Jornal “Correio do Povo” de Porto Alegre promoveu um encontro entre os dois protagonistas na sede da fazenda, cenário do episódio, quando foram mutuamente apresentados.
Euclides Guterres
Foto: Ed Keffel
O Cruzeiro
 Euclides, de chapéu de aba quebrada, confessou ter ficado temeroso quanto à sorte do piloto: “Eu não fiz por maldade. Pura brincadeira. Para falar a verdade eu não acreditava que pudesse pegar um aviãozinho pelas guampas num tiro de laço, mas aconteceu. Depois que o laço agarrou o avião, eu pensei que ele viesse abaixo. Quando ele se endireitou e subiu, tive uma grande alegria. Seria um desastre e o pobre moço não tinha culpa”, declarou.
Euclides Guterres faleceu em 1981, vítima de leucemia.

O piloto Irineu Noal, comerciário aposentado, aos 68 anos, em 1999, perguntado sobre o fato, não se sentia muito a vontade. “Foi uma brincadeira de guri” resumiu. E tripudiava sobre a habilidade do peão: “Foi pura sorte. Aquele não laçava nem vaca.”

O responsável por tornar esta façanha mundialmente conhecida, foi o jornalista Cláudio Candiota, que na época era diretor do jornal “A Razão” de Santa Maria. Encontrando-se em sua sala no jornal, foi procurado pelo comandante do aeroclube da cidade, Fernando Pereiron, preocupado com a divulgação da notícia, temendo prejuízos à imagem do estabelecimento que dirigia.

Quando soube do que se tratava, Candiota teve uma reação diametralmente oposta à pretendida por Pereiron. “Deixa comigo. Vou tornar este aeroclube famoso em todo o mundo. É a primeira vez que acontece uma coisa como essa.”

Como também era correspondente no Rio Grande do Sul da revista “O Cruzeiro”, o jornalista telefonou para a direção no Rio de Janeiro, que mandou, já no dia seguinte para Santa Maria, o seu melhor fotógrafo, o gaúcho Ed Keffel. Na edição número 19 da revista, em 23/02/1952 aparecia com exclusividade, a reportagem em cinco páginas, amplamente ilustrada.

Antes disso, devido provavelmente às datas em que as revistas eram lançadas, a americana Time Magazine, de 11 de Fevereiro de 1952 publicou a história com o título: “The Cowboy & the Airplaine”.

Outras publicações trataram do tema, como A Razão, Diário de Notícias e Correio do Povo. A Base Aérea de Santa Maria mantém em seu acervo vários jornais e revistas da época relatando a façanha de Euclides Guterres.

Viram como não menti?


Fontes: Revista O Cruzeiro n. 19 de 23 de fevereiro de 1952 / Time Magazine, de 11 de fevereiro de 1952 / Jornal Zero Hora, de 13 de junho de 1999 / Jornal Correio do Povo, de 29 de janeiro de 2007.

Da Internet:
HTTP://paginasdiversas.blogspot.com
HTTP://baraodecotegipe.blogspot.com

Foto e ilustração: Ed Keffel

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sábado, 12 de novembro de 2011

O Sumiço do Tio Tacilio - II


Em 10 de Janeiro de 2010, esta foto foi publicada na Torre, juntamente com o apelo por notícias.

Tratava-se do meu tio Octacílio Ferreira D`Avila, que havia sumido no final de 2006.


Recebi (e recebemos) algumas pistas, mas que, infelizmente se revelaram inconsistentes. Todas, porém, com a intenção de ajudar.

É em agradecimento a essas pessoas solidárias que hoje retomo o assunto com o objetivo de prestar contas.

Há cerca de dois meses, graças à traquinagem e à curiosidade de um menino que se embrenhara em um matagal aparentemente intransponível, em busca de pinhão,  foi encontrado o seu corpo. A família reconheceu alguns dos objetos e algumas caracteística que se poderia identificar em tais circunstâncias. Aparentemente e pelo quadro encontrado, tratou-se de suicídio. Aguarda-se agora o laudo pericial definitivo.

Apesar do desfecho que, mesmo aventado como uma possibilidade real causou-nos consternação, é o fim de um período de quase cinco anos de angústias e de incertezas.

Obrigado a todos que, de alguma forma, procuraram ajudar.

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sábado, 29 de outubro de 2011

Kadafi está morto. E agora?...

Nas décadas de 70 e 80, era obrigatória nos meios acadêmicos e democráticos a leitura da revista Cadernos do Terceiro Mundo. Ao menos dentre aqueles que se consideravam “consequentes”.

Criada na Argentina em 1974 por um grupo de jornalistas exilados que combatiam os regimes ditatoriais em seus países, tinha no seu corpo diretivo principal, o brasileiro Neiva Moreira, o argentino Pablo Piacentini e a jovem uruguaia Beatriz Bíssio.

Diferentemente de outras publicações de esquerda ou mesmo de resistência democrática, Cadernos não tinha um caráter panfletário ou de incitamento. Antes pelo contrário. Apesar da sua linha editorial ser francamente anti-ditatorial, terceiro-mundista e anti-imperialista, não se deixava enredar pelo simplismo da dualidade da guerra fria. Suas matérias e reportagens aprofundavam os temas cruciais dos países não-alinhados.

Como toda publicação não subvencionada, sempre esteve às voltas com dificuldades financeiras até que deixou de circular por volta de 2007.

Neiva Moreira voltou ao Brasil após a anistia. Atuou no PDT, partido fundado pelo seu amigo Leonel Brizola e na sua terra, o Maranhão, ao lado do governador Jackson Lago até este ser cassado pelas forças oligárquicas daquele estado.

Pablo Piacentini exerce seu trabalho de cientista político e jornalista na Argentina e Beatriz Bíssio mudou-se para o Brasil, onde igualmente é jornalista.

Estas são as informações que tenho, no momento, desses protagonistas e podem estar carentes de atualização.

Foi numa edição de Cadernos do Terceiro Mundo que li pela primeira vez sobre a Líbia de Kadafi e a sua proposta de Revolução Verde.

Kadafi assumira o poder em 1969 quando um grupo de oficiais nacionalistas, derrubou o rei Idris I, líder religioso sanusi, coroado rei após a Segunda Guerra Mundial.

Kadafi, então coronel, presidia o Conselho da Revolução e criou a Jamairia (República ou “Estado das Massas”) Árabe Popular e Socialista da Líbia, com forte alinhamento político-ideológico com o Pan-Arabismo, movimento que propunha reunir os países de língua árabe em torno de seus objetivos comuns.

Com fortes medidas nacionalistas, Kadafi expulsou os efetivos militares estrangeiros, nacionalizou as empresas, os bancos e os recursos petrolíferos do país. Com os recursos daí advindos, a Líbia tornou-se, até antes da recente guerra civil, o país com maior índice de desenvolvimento humano da África, segundo a ONU.

A revolução cultural, social e econômica desencadeada por Kadafi, gerou graves tensões políticas com os Estados Unidos, Inglaterra e até mesmo com os países árabes moderados, como Sudão, Egito e Chade.

A invasão por parte da Síria e do Egito à Israel na chamada Guerra do Yom Kyppur em 1973, motivou Kadafi a evocar os conceitos do Pan-Arabismo, já que a vitória israelense nessa guerra deveu-se muito ao fornecimento, por parte de alguns países árabes moderados, de combustíveis para a máquina de guerra de Israel.

O uso do petróleo como arma gerou uma das maiores crises energéticas de toda a história. Curiosamente despertou nos países importadores a necessidade de buscarem novas fontes de energia, como a nuclear, a eólica, a hídrica e a descoberta de novas reservas petrolíferas nos Bálcãs, na África (notadamente em Angola) e na América Latina (Venezuela e Brasil), e o uso de fontes renováveis como a bem sucedida experiência do álcool no Brasil, esvaziando os países árabes daquilo que seria o seu maior trunfo.

O sonho de Kadafi de expandir a Revolução Verde, assim entendido a auto-suficiência agrária, o pan-arabismo, a eliminação da influência ocidental, sob a bandeira verde de Maomé, começa a frustrar-se quando em 1982 os Estados Unidos impuseram um embargo às importações de petróleo líbio.

Agora de forma mais aberta, Kadafi começa a apoiar organizações como a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) e, segundo acusações americanas, a patrocinar e estimular o terrorismo internacional. Em 1986 Ronald Reagan ordena um bombardeio da aviação americana a vários alvos militares em Trípoli e em Bengazi. Kadafi se mantém no poder, apesar da morte de sua filha adotiva quando sua casa foi bombardeada, mas começa a perder seu prestígio internacional, inclusive diante dos demais países árabes.

A partir de 1990 o governo líbio procura restabelecer as relações com as potências ocidentais e com os países vizinhos. Adotou uma posição moderada quando da invasão do Kuwait e, posteriormente do Iraque. Mesmo com esta posição de neutralidade, a Líbia continuou sob forte isolamento internacional. Em 1992 a ONU impôs um embargo ao comércio e ao tráfego aéreo líbios, porque Kadafi se negava a entregar dois terroristas líbios acusados do atentado a um avião de passageiros sobre Lockerbie, na Escócia, quando morreram 270 pessoas em 1988.

A década de 90 caracterizou-se pelo afastamento de Kadafi dos antigos aliados; do Irã pelo recrudescimento do fundamentalismo islâmico; dos Palestinos pela disposição destes em negociar uma paz com Israel.

Em 1997 seis oficiais do exército líbio foram fuzilados numa tentativa de Kadafi de acabar com a crescente resistência de grupos religiosos islâmicos ao seu governo.

No bojo das manifestações populares que assolaram os países árabes desde o começo de 2011, a Líbia caminhou rapidamente para a guerra civil, fomentada, de um lado, pelo apoio aos rebeldes por parte dos Estados Unidos, Reino Unido e França, escudados sob a bandeira da OTAN e de outro pela reação truculenta das forças leais à Kadafi contra os manifestantes.

Estaria por trás deste apoio ocidental aos rebeldes, uma revisão que Kadafi havia feito nos contratos de exportação de petróleo pelas companhias petrolíferas estrangeiras, na sua maioria americanas, inglesas e francesas, na tentativa de estabelecer no país um governo mais favorável aos seus interesses.

No dia 20 de Outubro de 2011, Kadafi foi morto em Sirte e no seu lugar assumiu uma frente oposicionista denominada CNT – Conselho Nacional de Transição.

É de se questionar: Se a Líbia era o país com maior desenvolvimento humano da África, porque a Revolução Verde fracassou e teve este melancólico desfecho?

Creio firmemente que fracassou pelos mesmos motivos pelos quais fracassaram todas as revoluções de caráter popular e socialista. O nacionalismo exacerbado e a formação de uma casta dirigente rica e distanciada de seu povo, tornando-se invariavelmente em seus algozes, tal qual os porcos da Revolução dos Bichos de George Orwell. Não tenho conhecimento de nenhuma revolução que tenha fracassado somente pelos ataques e boicotes externos. Ou ela fracassa pelo seu fechamento em si mesma, ignorando o seu caráter internacionalista, como fazem a Coréia do Norte e a Albânia ou são derrotadas pela incompetência de seus dirigentes que se estabelecem acima da própria revolução. Ou pelos dois motivos sobrepostos.

Cabe, neste ponto, a assertiva e a pergunta: Kadafi está morto. E agora?

Vai depender muito de qual grupo prevalecerá dentro da CNT, pois é sabido que essa frente é integrada com bastante representatividade, pelos fundamentalistas islâmicos, que Kadafi já temia ao romper com o Irã em 1993.

No contexto regional, dentre os países árabes, somente a Arábia Saudita permanece como um aliado confiável e fiel da balança em favor do ocidente. Mas também lá já há um recrudescimento da oposição ao rei Abdallah.

Se nas lutas internas pelo poder na Líbia, Egito pós Mubarak, Síria e outros países árabes, inclusive a Arábia Saudita, prevalecer os grupos islâmicos fundamentalistas e radicais, somando-se ao Irã dos Aiatolás, o Pan-Arabismo poderá ser reeditado em outros moldes, aí sim, comprometendo a influência ocidental na região e até mesmo a própria sobrevivência do estado de Israel como nação.

Não sei o que diria Cadernos do Terceiro Mundo sobre este assunto e a análise que faço. Gostaria muito que Neiva Moreira, Pablo Piacentini e Beatriz Bíssio opinassem. Mas seria muita pretensão minha.

Finalizando (e já não sem tempo) se afirmei acima que o desenvolvimento de fontes alternativas de energia e a descoberta de novas reservas de petróleo distenderam a pressão dos países árabes sobre o ocidente, o que então justificaria essa preocupação intervencionista da OTAN sobre a Líbia?

Convém não esquecer que a Líbia, além do Egito, o Chade e o Sudão, isto é quase toda a parte oriental do deserto do Saara, dorme sobre a maior reserva de água subterrânea do mundo, avaliada em 150.000 km3 de água, o Sistema Aquífero Arenito da Núbia. Se para o petróleo há fontes alternativas, para a água não as há.

E como alerta, convém também não esquecer que o Brasil tem a Amazônia e o Aquífero Guarani.


Fontes de pesquisa: Wikipédia / Café História / Cadernos do Terceiro Mundo.

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sábado, 8 de outubro de 2011

"1984" - Da ficção de George Orwell à realidade de hoje


“1984” é um livro que li pela primeira vez em... 1984. Antes já tinha lido “A Revolução dos Bichos” do mesmo autor inglês, George Orwell.

George nasceu Eric Arthur Blair em Motihari a 25 de junho de 1903 e morreu em Londres a 21 de Janeiro de 1950.

Sua obra é marcada por uma inteligência perspicaz e bem-humorada, uma consciência profunda das injustiças sociais, uma intensa oposição ao totalitarismo e uma paixão pela clareza da escrita. Apontado como simpatizante da proposta anarquista, o escritor faz uma defesa da auto-gestão ou autonomismo. A sua crença no socialismo democrático foi abalada pelo "socialismo real" que ele denunciou em Animal Farm, a mesma Revolução dos Bichos que eu já tinha lido tempos atrás.

Ganhei o livro, de presente pelo meu aniversário, numa época em que eu ainda acreditava na Utopia, mas não é esse o enfoque deste texto.

Concluído no ano de 1948 e publicado em 8 de junho de 1949, ganhou o título de “Nineteen Eighty-Four” segundo alguns, pela inversão dos dois últimos algarismos do ano de sua conclusão. Retrata o cotidiano de um regime político totalitário e repressivo no então imaginário ano de 1984. No livro, Orwell mostra como uma sociedade oligárquica coletivista é capaz de reprimir qualquer um que se opuser a ela. A história narrada é a de Winston Smith, um homem com uma vida aparentemente insignificante, que recebe a tarefa de perpetuar a propaganda do regime por meio da falsificação de documentos públicos e da literatura a fim de que o governo sempre esteja correto no que faz. Smith fica cada vez mais desiludido com sua existência miserável e assim começa uma rebelião contra o sistema.

O romance se tornou famoso por seu retrato da difusa fiscalização e controle de um determinado governo na vida dos cidadãos, além da crescente invasão sobre os direitos do indivíduo. Desde sua publicação, muitos de seus termos e conceitos, como "Big Brother", "duplipensar" e "Novilíngua" entraram no vernáculo popular.

Recentemente li em uma publicação do Site “Xapecó – o “X” da Questão”, notícia sobre a implantação de novas câmeras de monitoramento em diversos lugares da pacata cidade. Aliás, hoje em dia não tão pacata, a ponto de justificar a instalação desses olhos eletrônicos.

Smith, na obra de Orwell era permanentemente vigiado por equipamentos estratégicamente instalados por onde quer que andasse, as “teletelas”. Nada escapava dos olhos do Grande Irmão, nem mesmo um esgar, uma expressão facial que pudesse demonstrar qualquer desaprovação ao sistema.

Minha amiga Betty, recentemente manifestava a sua preocupação em relação à segurança e à inviolabilidade de informações pessoais na Internet. Referia-se ela ao fato de que, ao realizar uma pesquisa sobre hotéis na Argentina, imediatamente a sua página no Facebook se encheu de anúncios de agências de viagens, coisa que ela não tinha solicitado especificamente.

E eu cheguei à conclusão de que estamos em pleno 1984 de Orwell.

O “duplipensar” está presente a cada vez em que abrimos um jornal, assistimos à um telejornal ou ouvimos o rádio. As versões de um fato se tornam mais reais que o próprio fato. Um escândalo de malversação de verbas públicas é justificado facilmente pelo nebuloso conceito de bem comum. E esquecido.

Lembro de uma piadinha que correu nos círculos em que eu militava na década de 70 e 80 e que causava mal-estar entre os mais sectários defensores do controle estatal sobre as informações repassadas aos cidadãos.

Consta que um mandatário importante da então “Cortina de Ferro” em visita a um país fora da cortina e de regime político diferente, participou de uma corrida com o presidente desse país. Só os dois participaram. O mandatário importante perdeu, e no dia seguinte os jornais da sua terra noticiavam em manchete de capa:

“ Nosso amado camarada e líder participou de uma corrida a pé em sua visita ao país “tal”. O presidente desse país só conseguiu chegar em penúltimo, enquanto que nosso excelente camarada presidente obteve um magnífico segundo lugar.” Isso é duplipensar.

“Newspeak” é uma língua fictícia utilizada no livro de Orwell, e é descrita como “a única língua no mundo cujo vocabulário diminui a cada ano.” (Orwell, 1984, p.52) Em português esse termo é tratado como “Novilíngua”.

A “Novilíngua” consiste na fusão de duas ou mais palavras em uma só, dando a ela, muitas vezes, o significado de uma frase inteira, sem a preocupação com gramática, etimologia e outros afins dispensáveis no novo regime. Assim, se queremos dizer “hoje o dia está ensolarado” em Novilíngua se diz: “hodisolado”. Econômico e simples assim. Não pode haver espaço para o pensamento. Isso pode ser perigoso.

Exemplos do uso da Novilíngua nos nossos dias? São inúmeros. Abra um e-mail (aliás, e-mail também é novilíngua e quer significar “correspondência eletrônica”) da sua caixa postal. Muito provavelmente encontrarás uma mensagem parecida com esta: “mdesta c rcbo n anx. SDS”.

(Tradução: Encaminho-te esta mensagem com a cópia do recibo no anexo. Saudações.)

Quer mais? Acompanhe uma conversa em uma sala de bate-papo qualquer:

- E aí, blz?

- Blz

- Dcm p/ Sts?

- Qdo?

- Hj...

- Hj?.. Blz.

- Falow.

- Falow.

-):

-):

(Tradução:

- Bom dia (ou boa tarde, boa noite), você está bem?

- Eu estou bem.

- Vamos descer para Santos?

- Quando?

- Hoje...

- Hoje?... Hoje está bom.

- Entendi o seu recado e concordo.

- Também concordo.

- Fico contente.

- Também fico contente.)

As Teletelas do Smith estão presentes em nosso dia-a-dia muito mais do que pensamos. Se você mora em uma casa e tem um mínimo de preocupação com a segurança, certamente você mandou instalar um alarme acoplado à uma ou várias câmeras que se conectam diretamente à uma central. Sua entrada e saída são permanentemente acompanhadas. Nem pense em levar alguma companhia suspeita para um jantar romântico enquanto sua esposa está na praia.

Se você mora em um condomínio, então...

Já no aconchego do seu lar, você se tranca no quarto, fecha as janelas e pensa: Oba... vou ver aquele filmezinho de sacanagem antes que as crianças cheguem da escola. Pensa estar escondido? Negativo. Seu IP já foi rastreado e não demora para você começar a receber ofertas de produtos para crescimento peniano. Ou outro tipo de produto, dependendo do gênero do filme.

No trabalho é a mesma coisa. No começo você fica um pouco constrangido, mas logo se acostuma com aquela câmera apontada para a sua cabeça.

Quando quebrei a perna, fui ao consultório particular do médico que me atendera, para a primeira consulta de revisão, e enquanto aguardava minha vez de ser chamado, na sala de espera, observava os outros pacientes. Um com o braço na tipóia, outro com a perna engessada, mais outro sentado de lado, todos com a expressão dolorida nos rostos. Na parede à nossa frente um cartaz exigia: “Sorria, você está sendo filmado”.

Na semana passada acompanhei a Marta até São Paulo em seus compromissos. Foi nesse dia que comecei a pensar com mais propriedade sobre a vulnerabilidade da nossa privacidade.

Como saímos cedo, decidimos tomar café no caminho. Logo na primeira padaria estava lá o cartaz e a câmera. O Cupom Fiscal não deixava dúvidas: tomamos café as 06:57 do dia 06 de Setembro de 2011 e eu comi pão de queijo. É bem provável que essa informação já esteja armazenada no Banco de Dados de algum laticínio mineiro que, por sua vez instruirá o fazendeiro associado a aumentar a produção da Mimosa.

Vinte e dois minutos depois, exatamente as 07:19 hs, enchemos o tanque do carro em um posto de combustíveis em Taubaté. Embora o carro seja bi-combustível, abastecemos com gasolina, pois na ponta do lápis era mais vantajoso. A maquininha do Cupom Fiscal transmitiu os bits para uma central que os encaminhou a quem de direito: ao governo por causa dos impostos, à distribuidora para regular seus estoques, aos estrategistas de mercado que estão agora analisando a nossa opção. Imagino que logo logo virá um novo aumento da gasolina para que não tenhamos escolha.

Durante todo o percurso, na ida pela Carvalho Pinto / Ayrton Senna, na volta pela Dutra, fomos perseguidos incansavelmente pelas câmeras ao longo da rodovia. Sem considerarmos as dezenas de pedágio e a polícia com seus radares móveis.

No engarrafamento da Marginal, os helicópteros da polícia e do Datena nos observavam do alto. Na reparticão pública em que fomos, nosso documento foi protocolizado as 10:37 hs, Está ali, registrado digitalmente no recibinho e disponível na Grande Rede para quem tem a senha.

Sabem dos nossos passos a cada segundo. É fácil calcular o tempo que gastamos para percorrer de um ponto ao outro e, consequentemente a velocidade que empreendemos. E não adianta tentar enganar.

- Onde o Sr. estava ente as 15:32 e 15:46 do dia 12 de Janeiro de 2011?

- Eu estava preso no trânsito da Marginal Tietê...

Um servidor com cara de nerd que opera uma máquina cheia de botões, a um canto da sala interrompe:

- É mentira, chefe. Nosso sistema registra que ele esteve entre 15h:33min:22seg e 15h:45min:18seg acompanhado por uma loira de blusa bege num motel da zona norte.

- Rapidinha, hein?

Por tudo isso fui pescar no final de semana. Fugir da civilização e de seus controles. Foi difícil encontrar um lugar adequado. Lugares haviam muitos, mas não adequados ao meu propósito de sumir e de me transformar em “impessoa” como escreveu Orwell. Os rios, riachos, vertentes e fios d´água foram todos transformados em pesqueiros organizados, com cancelas automáticas na entrada, câmeras espalhadas e pagos com cartão de crédito e suas consequentes maquininhas.

Sibipiruna

Depois de rodar por horas pelas antigas trilhas dos tropeiros de mulas que serpenteiam a Serra da Mantiqueira em direção ao Rio de Janeiro, encontramos um lugar aparentemente deserto e tranquilo. Improvisamos o acampamento e eu fui para a beira do riachinho, pescar. Peguei uns poucos peixinhos miúdos que não compensavam o esforço, mas valeu pela sensação de não existir. Parece até que essa sensação faz funcionar melhor o nosso metabolismo. Senti vontade e me voltei para o lado do mato. Estava já preparado para regar as raizes de uma sibipiruna quando lembrei do Bastiãozinho, um vizinho de meu pai lá da roça.

Quando ele tinha as suas necessidades, ele ia para perto de um mato, mas em vez de esconder-se adequadamente, ele camuflava a cabeça e deixava tudo o resto à mostra. Questionado sobre esse procedimento ele argumentava:

- Ora, se eu fico virado de frente, acocorado, com as calças arriadas, todos os que passarem pela estrada sairão comentanto: “Olha lá, o Bastiãozinho cagando!...” Mas se eu ficar de costas, só verão uma bunda, sem saberem de quem é...”

Nos dias de hoje essa estratégia não funcionaria porque certamente algum satélite capturaria a imagem que seria imediatamente submetida à um software chamado OBR em Novilíngua ou de “Optical Buttock Recognition” em inglès antigo e pronto, estaria identificado o Bastiãozinho.

Como a minha necessidade era outra, afundei o chapéu na cabeça e abri as suas abas, de modo que, se visto do alto, só apareceria um disco e um jato saindo dele.

Já estava sorrindo malevolamente satisfeito – pronto, seus trouxas, enganei vocês! – quando um susto me fez molhar as pernas da calça e os cadarços do tênis. É que da densa ramagem, oculto na mata, alguém gritou estridentemente:

- BEM-TE-VÍ!.. BEM-TE-VÍ!...

É trauma...


Fontes de pesquisa: Wikipédia / Orwell - 1984

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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O Negócio da Bicicleta

 José atravessou o rio por sobre o tronco caído da guajuvira sem dificuldades. Estava acostumado a passar por ali quase todos os dias, carregando a bicicleta. Nas épocas de estio, quando as águas minguavam era mais fácil cruzar pelo lajeado, um pouco mais abaixo, por onde as carretas e as mulas com os cargueiros de moagem passavam. Mas, apesar da chuva ter parado há uns três dias, as águas ainda estavam ligeiras e poderiam molhar os pneus, que depois, com o pó da estrada...

O pai tinha razão. Aliás, tinha sempre razão e por isso vivia bem de negócios, diferente dos vizinhos roceiros que só se prestavam para plantar e colher. Amâncio, o pai, não. Não plantava nem colhia no pedaço de terra que tinha junto ao rio. Quando as crianças eram ainda pequenas, obrigava-se a fincar um palanque, estirar um fio de arame, pregar uma ripa no cercado dos bichos miúdos, mas agora, com os filhos já taludos, eles que arrumassem as cercas e limpassem os chiqueiros. – Tenho que me preocupar com os negócios, dizia.

Vivia de escâmbio, como se falava nos arredores. Trocava uma galinha por um pato, um pato por um ganso, o ganso por um porco, o porco por uma novilha que logo virava vaca e dava cria a um bezerro que trocava por uma carga de milho para dar de comer a bicharada toda que sempre aumentava.

Tinha razão o pai – e era nisso que pensava José – quando ensinava que a aparência da mercadoria era tudo. – Essa colonada come cos zóio. Se pintar um gambá de vermeio eles compram por potrilho.

Então era melhor não arriscar a molhar os pneus da bicicleta que grudaria pó e sujaria os pára-lamas, o varão, os aros, enfim, desvalorizaria a mercadoria.

O Tadeu já tinha feito uma proposta no domingo passado, no jogo de bola. Dava duas galinhas e um frangote no negócio. Ele, como convém a um negociante e ensinara o pai, achou pouco. – Esta é uma Odomo, de quadro reforçado! Vale, pelo menos, aquele terneirote de sobre-ano que dia destes vi pastando no potreiro, perto dos cochos.

 Não, o boizinho era muita coisa. O negócio não saiu naquele dia. Ficaram de pensar mais e se propostearem novamente no sábado, quando tinha o puxirão no Ataliba.

De noite, em casa, contou para o pai.

- Não froxe. Endureça no terneiro. Se vê que não dá negócio, peça um porco, um leitãozote. Mas só as galinhas e o frango não. Em último caso, peça um pato de sobre-lombo. E dê um trato na bicicleta. Lave, escove as rodas, passe graxa na corrente e nas rosetas...

Bem mandado, melhor feito. Tirando uns descascados na pintura do quadro, a mola do bagageiro que tinha quebrado, a falta de dois raios e um amassadinho no pára-lama da frente, a bichinha parecia nova.

A Zizinha – batizada de Marilza – já tinha ido à frente junto com os dois outros irmãos. Ela não ia para a roça com os homens. Ficaria na casa ajudando a mulher do Ataliba nas lidas do almoço. Mas se prestou a levar a enxada dele, José, se bem que o seu interesse e dos irmãos não era bem o de render no eito. Mas o pai mandou... E nunca se sabe quando vamos precisar de um vizinho, um negócio lá prá diante. Não custa...

Na roça não teve oportunidade de falar com o Tadeu. Ele estava na outra ponta do eito, onde o mato era maior. – “Eu é que não sou burro de ir prá lá. Tá um capoeirão danado, e com esse sol...”

No meio da manhã e já com a roça bem adiantada, o Ataliba propôs um descanso, tomar um trago da branquinha que o Arcelino tinha trazido, enrolar o palheiro...

- Tadeu, vancê que é guri novo, bem podia dá uma carreira lá na sanga e pegar uma água fresca. Os porongos tão ali debaixo daquele açoita-cavalo. Encha os dois, faz o favor.

Quando foi buscar a água, viu a bicicleta na sombra, perto do mato. Parecia mais bonita, mais vistosa. Chegou perto, examinou, apalpou... Mas o boizinho era muita coisa...

Quando afundou os porongos para enchê-los avistou a Zizinha, com o vestido levantado acima dos joelhos, sentada no barranco do outro lado, com os pés na água.

- Vixe, Zizinha. Que me assusta! Que faz ai, que nem assombração, cruiz credo!...

- Vim lavá a gamela prá mode iscoiê o arrois. Mas vancê sujo a aua..

- Lava aqui mais prá riba. Prá cá ta limpa.

Encostou os porongos, saltou a sanga e ajudou-a a levantar-se.

- Minina, Cê ta cós pé moiado. Mió inxugá. Vá que gripa.

Não vendo nada ao redor que se prestasse a essa tarefa, tirou a camisa e começou a secar com ela os pés da Zizinha.

- Não carecia. O sol logo secava.

- Carecia sim. É por gosto.

Ela, de súbito fechou as pernas prendendo a mão dele entre os joelhos.

- Faiz cósca. Dá arrepio.

- Voismecê não gosta de cosquinha?

- Inté que gosto. Mas sô moça direita. Pode vir gente...

- Vem não. Tão tudo lá no morro...

- Sô moça direita, já disse. E cê ta levantano meu vistidinho... Mió pará. A mãe ensinô que não é prá ficá levantano o vistido a toa...

Entonces... Só nóis cumbiná prá não sê a toa...

Quando ele voltou para a roça, alguns roceiros já estavam trabalhando, outros, como o Arcelino bicavam os últimos goles da pinga.

- Alas pucha, tchê, demorô. Toma um gole? Tá no fim...

- Não, agradecido. O pai não deixa...

- Pois devia dexá. Faz bem pros miolos, com este sol...

O José do Amâncio se achegou, e depois de beber de um dos porongos perguntou:

- E então? Batemos o brique?

- Puzóia... Tive matutano...

- Eu também tive. Falei com o pai. Se achar que é muito o boizinho, podemos negociar com um porco. Porco grande e gordo, mais as galinhas...

... – e arresolvi fechá o negócio.

- Por um porco? Mas tem que ser dos grandes...

- Não. Pelo terneiro.

- Pelo terneiro? O de sobre-ano? Aquele?...

- Aquele. Fica bem pago.

- Palavra?... Negócio fechado?

- Palavra!... Negócio fechado! Despois da bóia passa lá em casa e pega o terneiro. Já dexa a bicicleta.

No dia seguinte, domingo, logo cedo o Tadeu estava treinando o equilíbrio na bicicleta. Na ladeira até que estava indo bem. Morro acima é que a coisa não ia. Não tinha jeito de aprender a acalcar os pedais um de cada vez. Não se concentrava, pensava na Zizinha. Mas com tempo e treino...

Do outro lado do rio teve churrasco. Amâncio resolveu aproveitar o bom negócio feito pelo filho e trocou com ele o boi por uma leitoa prenhe. Carnearam o boizinho.

Combinaram: É dia de o padre Humberto vir na capela da comunidade rezar a missa. Ele não vive reclamando a cada dois meis que não vamo na missa? Que semo tudo  pecador, que logramo os colonos nos negócios? Pois então. Vanceis mulher vão na missa. Eu e os guri ficamo carneando. Vão e convidem o padre.

Quando as mulheres voltaram com o padre, as costelas já estavam no fogo, no espeto feito com varas de guamirim. O restante da carne estava estendido em mantas no varal das roupas. Três fogos acesos por baixo, com gravetos verdes misturados com a lenha seca, faziam fumaça para espantar as varejeiras.

Na mesa, armada na sombra, perto do rio, com as laterais retiradas da carreta e outras taboas improvisadas, se ajuntaram todos. Padre Humberto ficou numa ponta, Amâncio na outra. Nos lados assentaram-se a filharada toda e mais o Capistrano um rapaz da vizinhança, que quando soube da carneação se ofereceu para ajudar... e foi ficando.

Orgulhoso, José recebia os elogios pelo ótimo negócio.

- Viu agora, padre, que também semo cristão? Fazemos negócios certos com a colonada. A maioria nem vai na missa. E negociam porque querem. Não obrigamos ninguém...

- Eu não criticava vocês, meus filhos. Só manifestava a minha preocupação com vossas ausências. Deus não proíbe a prosperidade desde que sem ostentação e com a devida retribuição à obra do Senhor e a seus enviados...

- Como hoje, padre. Meu filho José fez um bom negócio. Mandei as mulher na missa e convidei o senhor pro almoço...

Um bom negócio. Só falavam nisso. Zizinha baixou os olhos brejeiros e limpou a boca no canto da toalha, como que para disfarçar os pensamentos:

- Que o José, os mano, o pai e a mãe não saibam. Menos ainda saiba o padre Humberto, mas o negócio bom fui eu quem fiz...

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