sábado, 17 de abril de 2010

Kiko



Tenho saudade do meu tempo.
A vida era dura e cruel.
Cotizávamos moedas para comprar pão. Economizamos fósforos para acender uma fogueira de gravetos. Bombas explodiam mais adiante, trazendo para nós um cheiro ocre.

Tínhamos ideal e lutávamos por ele...

Primeiro foi pela anistia, para que brasileiros pudessem voltar à sua terra, ao seio de suas famílias... Queríamos de volta Miguel Arraes, Leonel Brizola, Henfil, Vandré, Bona Garcia.

Apanhávamos pelas ruas e nos campus das universidades... Mas nem doía. O lanho e as chagas dos cassetetes eram, para nós, medalhas de honra.

Lembro bem do Kiko, menino secundarista , rosto infantil, poeta e seiótico. Isso mesmo. Desenhava seios à ponta de lápis. Eram lindos os seus desenhos.
Pois uma noite ele chegou ao nosso refúgio todo machucado e chorando. Tinha apanhado da polícia na frente do colégio por estar desenhando e distribuindo panfletos pela anistia. Tratamos logo de curar suas feridas, mas ele não parava de chorar... E então, entre soluços, ele desabafou: “Aqueles macacos rasgaram os seios mais lindos que já desenhei”...

Tempos depois Kiko foi metralhado quando pichava um muro com a frase “ Fora Videla” referindo-se à visita do então ditador argentino ao nosso pais. Os jornais do dia seguinte anunciaram... “Bandido morto em tentativa de assalto.” Bandido, o Kiko? Era um menino meigo, uma criança, um idealista.

Descobrimos depois que fomos traídos por um companheiro. Ele condenou o Kiko à morte.

Hoje esse traidor vive de esmolas, e se depender de mim, morre de fome.

Todo esse preâmbulo para dizer que não vejo nos jovens de hoje nenhuma gana. Não têm ideais, não pensam além do seu próprio umbigo.

E se algum generalzinho de pijama, tipo um que conheço se sentir ofendido, eu lhe acuso: vocês assassinaram uma geração.

Mas não nos destruíram...
_________

12 comentários:

Anônimo disse...

Você comete um erro histórico grave, Quasímodo.
Jorge Rafael Videla ocupou a presidência da Argentina entre 1976 e 1981, sendo substituído pelo General Viola nesse último ano.
A campanha pela anistia foi em 1983, 1984, portanto fora do período de Videla na presidência da Argentina.

Quasímodo disse...

Erro histórico nenhum, amigo.

Você está confundindo a campanha pela anistia com a das "Diretas Já", esta sim ocorridas nos anos 93/94, motivada pela emenda Dante de Oliveira.

Anônimo disse...

Você tem razão. Me desculpe.
Mas porquê não dá o nome do traidor?

uns... disse...

ah, meu corcundinha querido!

quantas lembranças me trouxe esse seu relato! lembro-me muito bem de tudo isso que estava acontecendo, campanha pela anistia, e também a campanha pelas diretas. destas, participei mais ativamente, com o coração cheio de esperanças de que poderíamos mudar o mundo a partir de nossas ações. e bem antes disso, tinha aprendido, ainda no ginásio, a lutar pelos nossos direitos, o que valeu uma vez uma suspensão por ato de indisciplina e insubordinação. coisa que guardo até hoje (ainda tenho o escrito do diretor da escola comigo) com muito orgulho. pois o resultado que buscávamos na época foi alcançado. e você tem toda a razão quando diz que os jovens de hoje estão sem ideais. dá até dor no coração saber que tudo gira em torno do umbigo de cada um. coisa para a qual nossa mídia contribuiu em muito. hoje vale o "ter". pois há muito o "ser" foi assassinado.

beijos

Quasímodo disse...

Não tem di quê, Anônimo. As portas da Torre não têm tramelas, como vês. Sê benvindo sempre.
Não direi o nome, a vida já tratou de puni-lo. Além do mais, prefiro exaltar os bons.

Quasímodo disse...

Uns, querida!
De alguma forma ajudamos a mudar o mundo. Não importa se contribuimos com pequenos atos de rebeldia. O importante é que mantivemos acesa a chama da dignidade. Não nos deixamos virar gado, boiada, como escreveu Vandré em Disparada.
Me pergunto hoje, para quê? vendo esta geração amorfa que não consegue fazer a ligação entre suas reinvindicações específicas e o sistema que as gerou. Sem falar nos que preferem se anestesiar nas drogas, no crack. Estes sim, verdadeiros bois acéfalos. Pena.

Lu disse...

Olá!

Escuita, gostei muito do que escreveu. Li pensando, eita que o corcundinha sorto as estribeiras...rss
Mais uma passagem que não sabia. Lembro de quando passava horas me contando os causos, enquanto a perna sarava...

Pois, sabes bem o quanto seguro meus dedinhos pra não postar coisas com conteúdo que mostram minha indignação com alguns fatos. Não são fatos desse tipo, bem sabes. Apenas passagens amarguentas e cruéis... Mas tem horas que dá vontade de botar a boca no trombone, ah dá! Né?

Fique bem, e um abraço do tamanho do Rio Grande!!!

Quasímodo disse...

Lu, amiga querida.

Estive uns tempos sem o instrumento. Deu pane na ferramenta (o micro). Deu goteira na Torre com a chuvarada. Mas já reparei os buracos e está tudo bem agora.

Pois eu, por algum tempo também me continha. Agora não tenho mais essa preocupação, a não ser a de preservar alguns nomes e pessoas. Nada fiz de errado que me arrependa. Que escondam a cara e se envergonhem os verdugos, os traidores e os covardes.

Não temos como dimensionar o que cada passagem significou para cada um de nós, particularmente. Mas, dependendo de como cada um de nós absorveu, metabolizou os fatos, nos tornou o que somos hoje. E nenhum foi insignificante.

Outro abraço para ti, do tamanho do Rio Grande e mais um pedacinho de Santa Catarina.

fá... disse...

,
,
,
,
respiro e volto.
.
.só um momentinho.
,
,
,

fá... disse...

__-ah! saudade imensa dos nossos ideais sem freio, das discussões acaloradas, do quanto berramos pela anistia, Betinho!!! "caia a tarde feito viaduto e um bebado trajando luto, me lembrou carlitos"... quanta saudade de ser gente daquele jeito!!
o que que é isso companheiro?!!!
também dói no meu peito a falta de gana e amor aos ideais e à causa, à patria, dos nossos jovens.
essa massificante globalização, arre!!!
a poesia tem pouca vez, nossa música só sabe rebolar, num axé sem fim....me acabo em indignação, insisto com meus filhos, reluto em aceitar...
nossa geração não foi destruida, não!!! por isso temos ainda muito que lutar.
ai meu camardinha!! que dor me deu aqui. beira a impotência.
mas desesperar, jamais, aprendemos muito nesses anos, afinal de contas não tem cabimento, entregar o jogo no primeiro tempo!
.
.
amo você!
.
beijos

Quasímodo disse...

Pois é, Fá.

Falei em Henfil... Era no irmão dele que pensava, no Betinho.

Obrigado pela visita.

Beijos.

Lu disse...

Antes de virar a página...
Falaste tudo, ao dizer que não temos como dimensionar o que cada passagem significou pra nós...


Passagens boas, refletem-se agora no horizonte...Leio isso pensando na importância desse momento, nos amigos verdadeiros encontrados nesta passagem.
Um domingo maravilhoso pra você, amigo!
Beijo!

 
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