Depois de três anos de faculdade noturna, num vai e vem de duzentos quilômetros por noite e uma jornada estafante e pesada durante o dia na linha de produção de uma fábrica de compensados, cansou.
No final de 1978 tomou coragem e decidiu mudar. Demitiu-se da empresa e foi tentar a sorte em Porto Alegre. Procurou emprego por lá e o principal: a transferência da faculdade de administração que freqüentava em Passo Fundo, na UPF.
Conseguiu vaga na São Judas, mas perderia muitos créditos e disciplinas que já havia cumprido, por incompatibilidade de currículo. Mesmo assim reservou a vaga.
Na Galeria Malcon arrumou emprego numa financeira, muito mais pela lábia e alguns exageros autovalorativos do que por experiência ou competência comprovada, já que nada entendia de mercado financeiro e nem sabia escrever à máquina.
De evolução tecnológica a maior que tivera fora passar do cabo da enxada lá na roça para o martelo, o serrote e a plaina na fábrica. E algumas incursões pelos laminados.
Depois de assegurar um lugar para morar, com uns antigos colegas de Científico que agora estudavam na capital, rumou para a estação rodoviária e embarcou de volta para casa.
Quando chegou em casa encontrou seu tio, João, de visita que lhe ofereceu emprego numa cooperativa em Passo Fundo, da qual era Vice-Presidente.
Os planos mudaram. Seria melhor trabalhar em Passo Fundo onde poderia continuar com a faculdade sem maiores traumas ou interrupções.
O salário não era dos melhores, insuficiente até para pagar a faculdade, mas havia a promessa de aumento breve e de uma suplementação substancial através do INCRA num programa de apoio à profissionalização da gestão das cooperativas.
Não vieram nem o aumento, nem a verba do INCRA, o que o obrigou a fazer alguns bicos inimagináveis antes, para sobreviver. Aprendeu datilografia na marra e fazia polígrafos e apostilas num mimeógrafo a álcool para os colégios, e, através de um colega de trabalho, motoqueiro, tornou-se o fotógrafo da turma que se arriscava nas pistas de moto cross ou no circuito asfaltado de moto velocidade no Parque da Roselândia.
Foi nesse cenário e circunstâncias que ele conheceu Clodoaldo Teixeira.
No Brasil acentuava-se o descontentamento de cada vez mais amplas camadas da população com a truculência e desmandos de uma ditadura militar que agonizava, impotente diante da crise mundial que se iniciara em 1974.
Em São Paulo, no ABC, região de grande concentração operária, as greves dos metalúrgicos colocavam em cheque a autoridade governamental e o modelo econômico vigente.
Nas Universidades havia um sentimento incipiente pela volta da democracia. Digladiavam-se pela conquista de espaço nos Diretórios Acadêmicos conceitos de esquerda/direita. Novo Rumo, Liberdade e Luta (cujos militantes se orgulhavam de dizer: “Sou da Libelu”...) disputavam os minguados recursos dos acadêmicos vendendo seus jornais alternativos e clandestinos... Convergência Socialista, Hora do Povo...
Havia, também, o ressurgimento da luta pela reforma agrária, impulsionada pelo movimento dos atingidos por barragem na Encruzilhada Natalino, próxima a Passo Fundo.
Na cidade, os motoqueiros e cabeludos eram perseguidos pelos policiais e considerados marginais agitadores e subversivos.
Clodoaldo era um menino de 17 anos e, por trabalhar na oficina de uma revenda de motos, tornou-se o mecânico da turma de motoqueiros. Um quebra-galhos para tudo.
Num final de tarde, quando voltava para casa, pilotando sua moto, fugiu de uma barreira policial que o ordenara a parar. Fugiu por ser menor de idade e não ter carteira de habilitação.
Foi perseguido por três policiais numa viatura da Brigada Militar pela Avenida Brasil, e, em frente à sua casa próximo ao Hospital da Cidade, foi assassinado com um tiro nas costas.
Vizinhos que assistiram a cena impediram os policiais de se aproximarem do corpo estendido e colocaram-nos em fuga sob ameaças de linchamento.
Começava assim aquela que foi, talvez, a última revolta popular urbana do sul do país na época dos governos militares.
Amigos e conhecidos do rapaz, principalmente motociclistas, movimentaram-se durante toda à noite e boa parte da madrugada no centro da cidade. A associação de motociclistas da cidade - chamada Passo Fundo Moto Clube - levou seus integrantes às ruas e confeccionou cartazes com palavras de revolta e ofensa contra a Brigada Militar. Os manifestantes reuniram-se em frente à Delegacia de Polícia que conduziria a investigação e em frente ao quartel da Brigada Militar no bairro São Cristóvão. No quartel, o confronto com os brigadianos chegou a tal ponto que os policiais militares foram obrigados a criar barreiras armadas em frente ao prédio.
Ele tomou conhecimento do fato, consternado, já no dia seguinte, no escritório da Cooperativa, quando recolheu do chão o jornal O Nacional que estampava na capa a foto de uma camiseta furada e manchada de sangue e a manchete: TIRO NAS COSTAS.
De tradicional família de jornalistas, o Jornal O Nacional, como todos os meios de comunicação da época sofria a censura das autoridades, mas nesses dias, um jornalista, membro da família que comandava o jornal estava em Passo Fundo: Tarso de Castro.
Tarso era na época um dos expoentes da imprensa nacional e também um dos jornalistas mais visados pelo regime militar, em função de ser um dos fundadores do jornal O Pasquim, do Rio de Janeiro, que ao longo da ditadura se notabilizou por enfrentar a mesma e criticá-la com destemor.
O clima na cidade era de revolta e expectativa agravada pelas declarações do comandante da Brigada Militar que minimizava o ocorrido e claramente protegia os soldados.
Em 6 de fevereiro, um cortejo com cerca de dez mil pessoas, acompanhado pelos pedestres que se aglomeravam à beira das calçadas, levou o corpo de Clodoaldo Teixeira ao cemitério da vila Petrópolis. A avenida Brasil, que atravessa a cidade, ficou tomada por pessoas, carros e motocicletas.
À tarde, sem expediente na Cooperativa, ele tomou o ônibus no bairro Boqueirão e foi até ao centro da cidade. Havia policiais pelas esquinas. No outro ônibus que levava ao bairro Planaltina, onde ele cuidava da casa de um primo que estava em lua de mel, as pessoas comentavam entre assustadas e temerosas... “ Hoje a coisa vai se dar”...
O quartel da brigada, na avenida Presidente Vargas estava fortemente guardado por policiais armados.
Decidiu ir até a casa do primo, buscar a máquina fotográfica e voltar para o centro.
Ao retornarem ao centro da cidade, pretendendo fazer manifestação semelhante a da noite anterior, os integrantes do cortejo encontraram as ruas de acesso à Praça Marechal Floriano fechadas por homens e viaturas da Brigada Militar.
Foi assim que ele também encontrou a escadaria que subia da Sete de Setembro, na antiga gare da estação ferroviária, para as proximidades da praça, Dois soldados armados guardavam o alto da escada, impedindo a passagem de quem vinha da vila Luiza a arredores.
Por alguns momentos ele ficou ali parado, ao pé da escada pensando no que fazer. Foi quando algo ocorreu, pois os brigadianos saíram correndo em direção à praça, liberando a escada, que foi tomada pela população. Ele também subiu e correu pela rua acima.
Do alto dos prédios, pessoas nas janelas e sacadas olhavam em direção à praça. Num dos prédios havia uma bandeira do Brasil hasteada. Ele afastou-se para o canteiro central para obter melhor ângulo para fotografar, quando um grupo de pessoas o atropelou jogando-o no chão. O compartimento das pilhas do flash da máquina abriu-se e as pilhas rolaram pelo asfalto. Ele conseguiu recolhê-las e recolocá-las no lugar.
Na praça a algazarra era grande e ele seguiu para lá, enfrentando a multidão que vinha em direção oposta.
A praça estava tomada por populares que enfrentavam os policiais com pedaços de paus, pedras e galhos de árvores.
Ao encontrarem as ruas fechadas quando voltavam do enterro, um grupo de motoqueiros, tendo à frente um rapaz com um triciclo rompeu a barreira policial que se postava na esquina da rua Morom e invadiu a praça, forçando os policiais das outras barreiras a virem em socorro dos policiais que ali se encontravam. Deve ter sido por isso que os dois que guardavam a escadaria saíram correndo minutos antes.
O Jornal O Nacional do dia seguinte narrava: “Mais de cem motociclistas seguem do cemitério rumo à praça em frente à Catedral. Dezenas de pedestres participam do cortejo lento, em pleno meio-dia. Alguns empunham cartazes pedindo a prisão dos executores. Ao pararem na praça, notam centenas de policiais militares e soldados do Exército na rua lateral. Surgem viaturas, um grupamento a cavalo e homens a pé e com cassetetes da Tropa de Choque, da Brigada, que interrompem as ruas que dão acesso à praça. Um jovem ergue os braços. Pede calma. Um tenente, por um megafone, ordena aos `subversivos` que se dispersem. Pedestres e motoqueiros gritam contra a Brigada, enquanto pegam pedras do chão ou arrancam galhos de árvores da praça. Alguns motociclistas tentam fugir pelas ruas laterais, mas as viaturas interrompem as saídas. Os comerciantes fecham as portas de suas lojas. Os policiais a pé e os cavalarianos se aproximam. Uma voz, em meio à multidão, grita: Deixem-nos em paz!"
Era esse o grito preso na garganta dos 10 mil passo-fundenses que inundaram o centro de Passo Fundo em 6 de fevereiro de 1979 e que, muito mais do que revolta, tinham nas veias uma infinita sede de justiça, que transforma o povo quando há união e faz de um triste lamento um verdadeiro grito de guerra, guerra contra a conformidade, contra o acobertamento, contra a impunidade. Em tempos de ditadura, surpreende uma cidade inteira ter se levantado contra o punho de ferro dos militares e que tenha escrito em letras garrafais: "Brigada não protege, mata!", "Marginais a serviço da sociedade", "Assassinos!".
Os policiais, acuados buscaram refúgio no quartel do CPA3, que ficava na Avenida Brasil, a poucas quadras da praça, deixando uma viatura abandonada que foi logo depredada e incendiada.
Liderados pelos motoqueiros a população seguiu em perseguição aos policiais até em frente ao CPA3, onde uma barreira de soldados guardava a porta térrea enquanto outro grupo se postava na sacada do segundo andar. Ele seguia fotografando em meio à correria.
No meio da multidão reunida no canteiro central da Avenida Brasil ele notou algumas pessoas de camisa branca e cabelo curto, que destoavam dos demais manifestantes por estarem espalhados entre a multidão, mas que eram os mais raivosos incentivadores à uma invasão do quartel, onde, segundo se espalhou, estavam os três policiais que haviam assassinado Clodoaldo.
Ele não os conhecia das manifestações estudantis.
Algumas pessoas no meio do povo, portavam armas.
O ronco das motos aumentou e a população avançou para a porta do quartel. Os policiais que estavam na frente se refugiaram no interior. Ele viu os galhos das árvores balançarem e ouviu um barulho como se fora o bater de asas de pombas, e logo galhos e folhas caindo, antes de ouvir os estampidos. Os soldados que estavam na sacada disparavam com seus fuzis em direção à multidão. Atrás dele tombava morto Adão Faustino, um operário de 19 anos que nem participava da manifestação, e ferido gravemente Joceli Joaquim Macedo de 17, que viria falecer logo em seguida.
Isso mais enfureceu a multidão que decidiu tomar de vez o quartel, não medindo as conseqüências.
Eis então que surge, dobrando das esquinas das ruas Teixeira Soares e da Sete de Setembro, os tanques do Exército que se postam entre a população e o quartel, com suas metralhadoras e canhões apontados para a praça lotada.
O Major, comandante daquela unidade do Exército, desembarca e com um megafone começa a falar com a multidão. Com voz calma, mas firme, avisa que a partir daquele momento, o CPA3, quartel da Brigada Militar, estava sob o comando do Exército Brasileiro, e que os responsáveis pelo assassinato de Clodoaldo seriam exemplarmente punidos. Que estava vindo de Porto Alegre uma comissão de Deputados para apurar o ocorrido e que o comandante da Brigada Militar na cidade seria substituído.
Estoicamente começa a entoar o Hino Nacional Brasileiro que foi, aos poucos, sendo acompanhado pela população. Mas por garantia, os tanques permaneciam apontando suas metralhadoras.
O enfrentamento havia terminado. Aos poucos a população foi voltando para suas casas. O filme na máquina fotográfica já girava no vazio.
Quando ele voltava para casa, a pé, na praça um grupo de pessoas desenhava a cruz suástica no asfalto, onde há pouco ardera a viatura.
Quando ele mandou revelar as fotos, somente seis puderam ser aproveitadas, justamente as primeiras que ele havia tirado, no sábado anterior, numa festinha de motoqueiros, no apartamento de um deles, próximo ao colégio Fagundes dos Reis.
Com a queda, havia trincado a câmara, e só puderam ser reveladas as fotos que já haviam sido bobinadas para o outro cartucho.
Numa delas, Clodoaldo conversava com uma menina de vestido azul, no sofá da sala.
O tempo passou. Muito demorou para que a população voltasse a associar a Brigada Militar com o termo Segurança.
E ele também participou de outras manifestações, em condições diferentes que a de um mero fotógrafo amador frustrado.
Na noite da votação da Emenda Dante de Oliveira, que pretendia instituir eleições diretas para Presidente da República, novamente a Praça Marechal Floriano encheu-se de gente. Brigadianos assistiam, à distância.
Diante da frustração da derrota da Emenda, a população dispersou-se triste.
De volta para sua casa, agora no Boqueirão, ele seguia a pé, com a bandeira enrolada, quando passaram por ele um cabo e um soldado da Brigada Militar.
Um dizia para o outro: “Pois é, que pena... Se tivesse eleição, ninguém tirava do tio Brisa... “ referindo-se à Leonel de Moura Brisola, ex governador gaúcho.
O Brasil começava a mudar.
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12 comentários:
Pela riqueza de detalhes e conhecimento de datas e lugares, creio que sei quem és.
Gostava de voltar a te encontrar, pelo menos para botar assuntos de mais de 20 anos em dia. Como fazer?...
Abraço.
Belinha. (Lembra?)
Amigo Quasi, que história cheia de verdades e detalhes. Garanto que estás emocionado, como eu!
Parabéns,
beijos
Belinha;
Como não lembrar de ti, guerreira.
"Juana Azurduy
Sol del alto Perú
No hay otro Capitán
Más valiente que tú.
Truena el cañón
Prestáme tu fusil
Que la Revolución
Viene oliendo a Jazmín"
Lembras também?...
____eu sou uma expectadora confortável da história meu querido camarada, minha época quase nada me deixou para fazer, a não ser palavras de ordem, que eu as guardo na memória e no coração, e os livros devorados na ânsia de entender, de aprender do nosso país.
pude entrar no seu relato e acompanhar cada passo, extraordinária essa nossa vida de idealistas, né?
amo nosso ideal, por ele vivemos, mesmo que atenuado ele arde firme em nossos corações.
obrigada por essa linda revisita.
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um beijo, camaradinha querido..
Oi, meu amigo, não posso deixar de registrar aqui a emoção que senti ao ler tão grandioso relato. Infelizmente os inocentes se vão.
Encantada também pelo protagonista...
beijos
Anonimo sou eu, água, rsrs
beijo
Hum...o que sei desta época,vem dos livros de história,mas,confesso...sinto um orgulho imenso de todos que participaram,lutaram por este ideal!
É por eles que,hoje,podemos registrar,aqui,nossas idéias...
Este "ator" não tem nada de figurante...rs
Belo texto!
Bela história de vida!!
Beijos,Saci...rs
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Obrigado amigas, pela visita e incentivo.
com muito atraso, mas com fome de devorar tanta riqueza.
esse texto me fez viajar ao passado não tão distante, trazendo à memória, nomes que faziam parte do meu dia-a-dia...
lembranças de uma mínima participação dos eventos que levaram à mudança.
parabéns pelo escrito!
beijos
Dias 5 e 6 de fevereiro de 2009, fizeram 30 anos desses fatos triste.
Achei por bem relembrá-los. Omiti alguns nomes, por pudência. Outros omiti por asco. Os jornais da época os estampa.
Minha homenagem ao querido amigo, menino Clodoaldo. Que Deus o tenha e que continue a reconfortar a sua família, tão digna e serena diante dessa tragédia inesperada.
A homenagem se estende à familia do Adão e do Joceli, que não conheci, mas que estavam no caminho da história.
Deus abençoe a todos. E aos amigos que me leram.
pudência?.... Prudência... rsss...
Eu estava lá!!! Participei de tudo!!
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