sábado, 25 de outubro de 2008

A M´Boitatá

Buenas... Tem bóia?... Vim prá pousar!
Quê puxa, baita mormaço. Até nem aquente a água pro mate, desta feita. Calorão!...
Ai do campeiro que se pegar longe do rancho, pastoreando. Hoje é noite da Boitatá. Já vistes uma?... Já?.. Então... Mas garanto que não sabes como ela nasceu. Pois lhes conto:





I
FOI ASSIM:
num tempo muito antigo, muito, houve uma noite tão comprida que pareceu que nunca mais haveria luz do dia.
Noite escura como breu, sem lume no céu, sem vento, sem serenada e sem rumores, sem cheiro dos pastos maduros nem das flores da mataria.
Os homens viveram abichornados, na tristeza dura; e porque churrasco não havia, não mais sopravam labaredas nos fogões e passavam comendo canjica insossa; os borra­lhos estavam se apagando e era preciso poupar os tições...
Os olhos andavam tão enfarados da noite, que ficavam parados, horas e horas, olhando, sem ver as brasas vermelhas do nhanduvai... as brasas somente, porque as faíscas, que alegram, não saltavam, por falta do sopro forte de bocas contentes.
Naquela escuridão fechada nenhum tapejara seria capaz de cruzar pelos trilhos do campo, nenhum flete crioulo teria faro nem ouvido nem vista para bater na querência; até nem sorro daria no seu próprio rastro!
E a noite velha ia andando... ia andando...

II
Minto:
no meio do escuro e do silêncio morto, de vez em quando, ora duma banda ora doutra, de vez em quando uma cantiga forte, de bicho vivente, furava o ar; era o téu-téu ativo, que não dormia desde o entrar do último sol e que vigiava sempre, esperando a volta do sol novo, que devia vir e que tardava tanto já…
Só o téu-téu de vez em quando cantava; o seu - quero-quero! - tão claro, vindo de lá do fundo da escuridão, ia agüentando a esperança dos homens, amontoados no redor avermelhado das brasas.
Fora disto, tudo o mais era silêncio; e de movimento, então, nem nada.

III
Minto:
na última tarde em que houve sol, quando o sol ia descambando para o outro lado das coxilhas, rumo do minuano, e de onde sobe a estrela-d'alva, nessa última tarde também desabou uma chuvarada tremenda; foi uma manga d'água que levou um tempão a cair, e durou… e durou...
Os campos foram inundados; as lagoas subiram e se largaram em fitas coleando pelos tacuruzais e banhados, que se juntaram, todos num; os passos cresceram e todo aquele peso d'água correu para as sangas e das sangas para os arroios, que ficaram bufando, campo fora, campo fora, afogando as canhadas, batendo no lombo das coxilhas. E nessas coroas é que ficou sendo o paradouro da animalada, tudo misturado, no assombro. E era terneiros e pumas, tourada e potrilhos, perdizes e guaraxains, tudo amigo, de puro medo. E então!...
Nas copas dos butiás vinham encostar-se bolos de formigas; as cobras se enroscavam na enrediça dos aguapés; e nas estivas do santa-fé e das tiriricas, boiavam os ratões e outros miúdos.
E, como a água encheu todas as tocas, entrou também na da cobra-grande, a - boiguaçu - que, havia já muitas mãos de luas, dormia quieta, entanguida. Ela então acordou-se e saiu, rabeando.
Começou depois a mortandade dos bichos e a boiguaçu pegou a comer as carniças. Mas só comia os olhos e nada, nada mais.
A água foi baixando, a carniça foi cada vez engrossando, e a cada hora mais olhos a cobra-grande comia.

IV
Cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu.
A tambeira que só come trevo maduro dá no leite o cheiro do milho verde; o cerdo que come carne de bagual nem alqueires de mandioca o limpam bem; e o socó tristonho e o biguá matreiro até no sangue têm cheiro de pescado. Assim também, nos homens, que até sem comer nada, dão nos olhos a cor de seus arrancos. O homem de olhos limpos guapo e mão-aberta; cuidado com os vermelhos; mais cuidados ­com os amarelos; e, toma tenência doble com os raiados e baços!…
Assim foi também, mas doutro jeito, com a boiguaçu, que tantos olhos comeu.

V
Todos - tantos, tantos! que a cobra-grande comeu -, levam, entranhado e luzindo, um rastilho da última luz que eles viram do último sol, antes da noite grande que caiu...
E os olhos - tantos, tantos! - com um pingo de luz cada um, foram sendo devorados; no principio um punhado, ao depois uma porção, depois um bocadão, depois, como uma braçada…

VI
E vai,
como a boiguaçu não tinha pêlos como o boi, nem escamas como o dourado, nem penas como o avestruz, nem casca como o tatu, nem couro grosso como a anta, vai, o seu corpo foi ficando transparente, transparente, clareado pelos miles de luzezinhas, dos tantos olhos que foram esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz. E vai, afinal, a boiguaçu toda já era uma luzerna, um clarão sem chamas, já era um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda estavam vivos…

VII
Foi assim e foi por isso que os homens, quando pela vez primeira viram a boiguaçu tão demudada, não a conheceram mais. Não conheceram e julgando que era outra, muito outra, chamam-na desde então, de boitatá, cobra de fogo, boitatá, a boitatá!
E muitas vezes a boitatá rondou as rancherias, faminta, sempre que nem chimarrão. Era então que o téu-téu cantava, como bombeiro.
E os homens, por curiosos, olhavam pasmados, para aquele grande corpo de serpente, transparente - tatá, de fogo - que media mais braças que três laços de conta e ia alumiando baçamente as carquejas... E depois, choravam. Choravam, desatinados do perigo, pois as suas lágrimas também guardavam tanta ou mais luz que só os olhos e a boitatá ainda cobiçava os olhos vivos dos homens, que já os das carniças a enfaravam...

VIII
Mas, como dizia:
na escuridão só avultava o clarão baço do corpo da boitatá, e era por ela que o téu-téu cantava de vigia, em todos os flancos da noite.
Passado um tempo, a boitatá morreu; de pura fraqueza morreu, porque os olhos comidos encheram-lhe o corpo mas não lhe deram sustância, pois que sustância não tem a luz que os olhos em si entranhados tiveram quando vivos…
Depois de rebolar-se rabiosa nos montes de carniça, sobre os couros pelados, sobre as carnes desfeitas, sobre as cabelamas soltas, sobre as ossamentas desparramadas, o corpo dela desmanchou-se, também como cousa da terra, que se estraga de vez.
E foi então, que a luz que estava presa se desatou por aí. E até pareceu cousa mandada: o sol apareceu de novo!

IX
Minto:
apareceu sim, mas não veio de supetão. Primeiro foi-se adelgaçando o negrume, foram despontando as estrelas; e estas se foram sumindo no cobreado do céu; depois foi sendo mais claro, mais claro, e logo, na lonjura, começou a subir uma lista de luz… depois a metade de uma cambota de fogo… e já foi o sol que subiu, subiu, subiu, até vir a pino e descambar, como dantes, e desta feita, para igualar o dia e a noite, em metades, para sempre.

X
Tudo o que morre no mundo se junta à semente de onde nasceu, para nascer de novo: só a luz da boitatá ficou sozinha, nunca mais se juntou com a outra luz de que saiu.
Anda sempre arisca e só, nos lugares onde quanta mais carniça houve, mais se infesta. E no inverno, de entanguida, não aparece e dorme, talvez entocada.
Mas de verão, depois da quentura dos mormaços, começa então o seu fadário.
A boitatá, toda enroscada, como uma bola - tatá, de fogo! - empeça a correr o campo, coxilha abaixo, lomba acima, até que horas da noite!...
É um fogo amarelo azulado, que não queima a macega seca nem aquenta a água dos manantiais; e rola, gira, corre, corcoveia e se despenca e arrebenta-se, apagando... e quando um menos espera, aparece, outra vez, do mesmo jeito!
Maldito! Tesconjuro!

XI
Quem encontra a boitatá pode até ficar cego... Quando alguém topa com ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de olhos fechados apertados e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se anda a cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande e atirar-lha em cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até a ilhapa!
A boitatá vem acompanhando o ferro da argola... mas de repente, batendo numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para emulitar-se de novo, com vagar, na aragem que ajuda.

XII
Campeiro precatado! reponte o seu gado da querência da boitatá: o pastiçal, aí, faz peste...
Tenho visto!

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Esta lenda, contada por Juca, foi resgatada por João Simões Lopes Neto, em “Lendas do Sul”, obra publicada em 1913.

João Simões Lopes Neto foi, segundo estudiosos e críticos de literatura, o maior escritor regionalista do Rio Grande do Sul. Nasceu em Pelotas, em 9 de março de 1865, filho de família abastada da região.
Publicou apenas três livros em sua vida: Cancioneiro Guasca (1910), Contos Gauchescos (1912), e Lendas do Sul (1913).
Morreu em 14 de junho de 1916, em Pelotas, aos cinqüenta e um anos, de uma úlcera perfurada.
Sua literatura ultrapassou fronteiras e hoje pertence à literatura universal, tendo sido traduzido para diversas línguas.



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Eu vi uma Boitatá. Corria o ano de 1963 ou 64, não lembro bem. Morávamos nos fundos de uma fazenda, um pequeno pedaço de terras cedido pelo meu avô materno. Ainda lá, mais no fundo havia um alagadiço, banhado – como chamávamos, onde se plantava arroz. Um pequeno riacho, de águas mansas, quase paradas, alimentava lentamente as valas que irrigavam o arrozal.

Numa noite quente, abafada, fomos, eu e um irmão mais velho pescar bagres nesse riacho, poucos metros dele se bifurcar em pequenas valas e alagar a lavoura de arroz.

Havíamos pescado alguns pequenos peixes redondos e lisos, que enfiávamos pela guerla numa forquilha de vara fina.

Ela surgiu ao lado do meu irmão que pescava a uns 5 metros abaixo de onde eu estava. Eu ouvi um pequeno barulho abafado e ela estava lá, no meio do riacho, mais próximo da margem de onde estava meu irmão, como uma cobra verdadeiramente, amarela azulada, primeiro apontando para o céu, depois pareceu rastejar sobre a água. Fiquei petrificado de medo, paralisado.

Ao contrário, meu irmão debandou para o lado da casa e ela o seguiu de perto, quase tocando em seus calcanhares. Ainda lembro quando dobraram por detrás de uma corticeira – marrequinha – e desapareceram numa ponta de mato de guamirim.

Não me lembro de ter voltado para casa. Mais tarde soube que os adultos tinham vindo me resgatar, diante do escarcéu que meu irmão havia feito ao chegar à casa. Ele ficou gago por uns tempos. Depois sarou.

Alguns anos mais tarde, quando eu já estava na cidade estudando, vim a desvendar a assombração, e entender que se tratava de um fogo fátuo.
A explicação é que são produtos da combustão do gás metano gerados pela decomposição de substâncias orgânicas encontradas em cemitérios, pântanos, brejos, etc., ou a fosforescência natural dos sais de cálcio presentes nos ossos enterrados.
Muitos que avistam o fenômeno tendem a evacuar o local rapidamente, o que, devido ao deslocamento do ar, faz com que o fogo fátuo mova-se na mesma direção da pessoa. Tal fato leva muitos a crer que o fenômeno se trata de um evento sobrenatural, tais como espíritos, fantasmas, dentre outros.
Quando um corpo orgânico começa a entrar em putrefação, ocorre a emissão do gás metano (CH4). O metano, em condições especiais de pressão e temperatura, em local não ventilado, começa a sair do solo e se misturar com o oxigênio do ar. Em uma porcentagem de aproximadamente 28%, o metano se inflama espontaneamente, sem necessidade de uma faísca. Forma uma chama azulada, de curta duração, gerando um pequeno ruído. Se a pessoa estiver perto e sair correndo, devido ao deslocamento do ar a chama "irá atrás.

Isso explica também o motivo de se jogar o laço em direção a ela e galopar arrastando-o. Ao arrastá-lo a argola do laço enrosca nas macegas e vassouras do caminho, movimentando-as e conseqüentemente movimentando o ar ao seu redor, enganando a cobra de fogo, que se dissipa fragmentada pelo movimento ou pelo esgotamento do gás, combustível que a mantinha acesa.
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Sinceramente, gostaria de não ter aprendido isso. Gostaria de ter ainda o mesmo medo ingênuo dos campeiros simples.

Abraço a todos que vierem à Torre.
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8 comentários:

Anônimo disse...

Este fato ocorreu nos idos de 64?
Fala pro Juca que nem era Boitatá!
Era o foguetório aqui em casa...pq tinha nascido "a coisa mais amor" da família...hehehe
.
Texto especial!
Muito legal!
Beijos!!
.

Tua BB disse...

Boa semana para ti também.
Como me achou? O Blog é experimental, ainda escondido. Mantenha-o assim por favor.

Beijos.

Assinado: ±

Quasímodo disse...

Milly; sempre pensei que o nascimento da "coisa mais amor da família" tivesse sido anunciado por uma Estrela de Belém que vi passando por sobre o Rio Grande, nos idos de 64, rumando para essas bandas... Não foi?... Deveria ter sido!...

Quasímodo disse...

Mais ou Menos; (Não aprendi a acavalar esses sinais)... Todos os caminhos nos levam aos amigos que queremos bem...

Um abraço e tranquiliza-te...

uns... disse...

hummm
'
que lenda mais lindinha.
fiquei com inveja de você por ter presenciado a aparição.
'
do meu lado, não conhecia a boitatá, mas conhecia o fogo fátuo, que me foi devidamente explicado por meu pai certa vez em que ele (o fogo) surgiu no lugar onde havia sido enterrado um cachorro.
'
pois é... o medo ingênuo... ele nos faz falta.
'
parabéns, corcundinha mais amor, por compartilhar conosco essa preciosidade.
'
beijos

Quasímodo disse...

Úns...
O povo é mesmo muito criativo para explicar o desconhecido, o misterioso.

Quando desvendamos as razões de um fenômeno, fica a sensação de que fomos enganados, como quando descobrimos o truque de um mágico e vemos que é tão simples...

Beijos..

Anônimo disse...

Oi amigão, adorei ver o nome da minha terra, com um poeta da minha terra, ser mostrado aos brasileiros e talvez a desconhecidos da beleza de sua obra(Simões Lopes Neto), boas lembranças da faculdade, onde tive que estuda-lo.
Beijão e estou adorando passear por aqui.

Gilead Maurício disse...

É, meu amigo, a inocência é muito mais poética. E lógica.

 
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