sábado, 20 de setembro de 2008

O novo visual da Torre e o amigo Juca Melena


A Torre passou por reformas. Eu havia alertado, no início, de que isso poderia acontecer.

Reformamos a casa, trocamos de roupas, mudamos o penteado e o visual.

A vida se encarrega de fazer outras mudanças, umas passageiras e sutis, outras definitivas e profundas.

As mudanças na Torre foram arquitetadas pela sensibilidade da amiga Anne com a colaboração da Lu, ambas mestras em edificar amizades. A elas duas, meu carinho infindo.

Cremos ter tornado a Torre mais agradável às visitas, sempre bem-vindas.

Como a visita que recebo hoje, do meu amigo Juca Melena. Gaúcho das Missões Jesuíticas, diz ele ter nascido perto dos Cerros de Santa Tecla, ao lado do M`Bororé, perto de São Borja.

Tratamos-nos mutuamente por “compadre’, embora não haja razão para tal, pois não somos padrinhos de nenhuma criança, filho de um ou de outro, mas por consideração, como ele diz.

De idade ele aparenta cerca de setenta anos, não mais. No entanto, se considerarmos as histórias que ele conta, jurando ter estado presente e interagido nos fatos, terá, certamente, muitos séculos de existência.

Carregou enormes pedras nas costas, ajudando os Guaranis do Padre Roque Gonzáles de Santa Cruz a erigir as torres de São Miguel. Esteve ao lado dos Lanceiros Negros com Garibaldi em Laguna. Foi testemunha da paz imposta em Ponche Verde.

Em 1864 lutou (peleou, no seu vocabulário) contra as forças de Solano Lopes na Guerra do Paraguai. Mais tarde, em 1923, testemunhou os embates entre Maragatos e Chimangos, ora usando o lenço branco, ora o colorado.

Visita a Torre incidentalmente. Chega sem avisar, calçando as velhas botas pretas ressequidas de sempre. Sobe dois ou três degraus e se dá conta do peso das tralhas de montaria que carrega. Joga-as a um canto qualquer e grita:
- Buenas, compadre. Tem bóia? Vim prá pousar...

Convidei-o a contar suas histórias para as “Letras da Torre.” Ele dita e eu escrevo. Procuro fazer a transcrição literal de suas palavras, embora, às vezes, eu intervenha pedindo moderação, pois alguns termos que usa podem causar mal estar a leitores mais refinados.

Ei-lo. Não acreditem piamente em tudo o que ele diz, até que os historiadores possam provar cabalmente a sua veracidade.

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Buenas, Tchê. Tem bóia? Vim prá pousar.

Me pedes para contar uns causos? Pois conto.

Bota aí: (Carece apagar o palheiro? Não?... Então...)

Conto de mim, por primeiro.
Meu nome é Juca Melena.
Minto!...
De batismo e de papel sou mesmo José dos Santo. José por causa do santo e Santo por causa do pai.
Juca, não sei de onde trago, mas de Melena eu conto, pois bem me lembro.
Foi por obra de uma prima, mui linda e de olho azul, alemoa por cruzamento. Então... Fui sestear certa feita, na casa dela, na Vila Oeste, quando eu balseava umas toras de canjerana para entregar em Corrientes e o Uruguai tava baixo. O Salto Grande – Yucumã – não dava vaza. Então encostei a balsa para esperar a enchente. Nesse entremeio de espera fui visitar a tia, pois que longe não era. Coisa assim, de poucas léguas, do lado barriga verde do rio, pras bandas de Palma Sola.

A prima essa, do olho azul de quem lhes falo, alcunhou-me de Melena, por conta das crinas compridas que ainda eu tinha na época.

Muy hermosa, ela, a prima. (Escutou o sotaque castelhano, compadre?... Então... Aprendi com as correntinas.)

Mas bueno...

Tenho uma bem querença por demais de grande por este guri, meu compadre. Quando chego assim meio estropiado, é por aqui que me arrancho. Tem bóia de primeira e a prosa é boa.

(Pintastes o rancho, bagual? Parece ter mão de china nestes caprichos. Tem?... Então... Enrabichou-se?... Não?... Então...)

O causo? Ah, o causo!

Pois como tava lhes contando, conheci este qüera desde o desmame. Andava lá, pelas mangueiras, mexendo em bosta de vaca, alambrando sabugos e tocando boi de osso por diante.

Quando ficou mais retovado, não se prestou para a lida. Tinha, assim, o espinhaço torcido prá frente, como um anzol de jundiá, sem a fisga. Não era de montaria. Até mesmo quando montava de encilha na égua mansa das prendas, plancheava logo no primeiro trote.

O patrão velho, que era bueno barbaridade, entrou nuns entendimentos com uma tal tia, de nome Amália, que morava na Vila, e mandaram o estrupício prá lá, prá aprender as letras e virar doutor.

(Me alcance o mate! Então...)

Eu, por essa conta, fiquei na estância. Nos dias de sol, amanunciava aporriados, nos de chuva limpava os galpões e lidava com tentos. Quando a pachorra azucrinava por demais, tinha uma revolução de permeio.

(Pega a cuia, que roncou... Então...)

De letras, sei muito pouco. Desenho o nome male mal. De reza decorei a Ave Maria até o bendito o fruto. Do Pai Nosso, até as ofensas. Mas nas contas não me atrapalho, sei bem quando querem me lograr no troco.

De resto, venho pro pouso. Vim saber desta querência meio que por acaso. Da venda do Lupercino, quando tomava uma canha, eu vi um andar meio que, por assim dizer, capenga de um lado. Pois que me atiçaram as lembranças, vim de atrás. Era mesmo o estrupício, bem mais taludo. Fiquei por aqui, meio encabulado, mas pousei...

(Tem mão de china nestas paredes. Pelo cuidado!... Enrabichou-se?... Não?... Então...)

Mas bueno, lavou a erva. Me acomodo por aqui, neste baldrame. É escada?... Então...


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Juca Melena voltará. Ele sempre volta. Prometeu-me trazer uns “causos” e a gaita. Pode tocar na Torre, Anne? Não é um sacrilégio?
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Logo após a publicação desta postagem, recebi, por vários meios, reclamações de que muitos termos e expressões usadas pelo Juca Melena são de difícil entendimento. Concordo. Foi falha minha. Habituei-me com esse linguajar e não me dei conta de que nem todos que visitam a Torre vêm do Rio Grande do Sul ou tiveram um convívio suficientemente prolongado e envolvente a ponto de entender os termos usados por ele.
Para reparar esta falha involuntária minha, publico um pequeno glossário de termos e expressões que considero de mais difícil entendimento, para quem vem de fora.
Algumas palavras e explicações são de minha própria tradução e lavra, por não ter encontrado definições em publicações disponíveis. Outras, credito às seguintes fontes: Dicionário Priberam de Língua Portuguesa (
http://www.priberam.pt), Dicionário Gaúcho, do Site Invernada de Guapos (http://www.invernadadeguapos.hpg.ig.com.br) e extremamente útil o glossário de termos gauchescos da Universidade Federal de Pelotas, que recomendo (http://www.ufpel.tche.br/pelotas/glossario.html) .
Se, ainda com este adendo, pairar dúvidas, recomendo aos visitantes que se reportem a mim, especificando os seus não entendimentos no espaço reservado aos comentários. As palavras abaixo não estão em ordem alfabética, mas na sequëncia em que aparecem no texto.

MELENA: Cabelo comprido, cabelo desgrenhado, gadelha. Parte da crina do cavalo, pendendo da cabeça sobre a fronte.

CAUSOS: Contos, estórias.

MARAGATO: Nome dado aos sulistas que iniciaram a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul em 1893 em protesto à política exercida pelo governo federal representado na (então) província por Júlio de Castilhos. Os Maragatos eram identificados pelo uso de um lenço vermelho (colorado) no pescoço. Na Revolução de 1923 desencadeada contra a permanência de Borges de Medeiros no governo do Estado, novamente a corrente Maragata rebelou-se, liderada pelo diplomata e pecuarista Assis Brasil.

CHIMANGO: (Ou Ximango): Alcunha dada no Rio Grande do Sul aos partidários do governo de Borges de Medeiros na Revolução de 1923. Identificavam-se pelo uso do lenço branco amarrado no pescoço. Chimango, (termo usado pejorativamente pelos adversários políticos Maragatos, já que consideravam Borges de Medeiros um usurpador) é uma ave de rapina, comum na campanha rio-grandense, parecida com o carcará, porém menor do que este.

CARECE: (Carecer), precisa (do verbo precisar), necessita.

PALHEIRO: Cigarro de confecção manual em que o fumo é enrolado em uma palha de milho.

SESTEAR: Descansar, dormir a sesta. Abrigar do calor (o gado).

BALSEAVA: Conduzia a balsa.

TORAS: Troncos de madeira.

CANJERANA: Árvore de madeira vermelha ou rosada, conhecida também como cedro-canjerana.

CORRIENTES: Província (estado) argentina.

YUCUMÃ: Do Tupi-Guarani: Salto Grande. Queda de água, cachoeira existente no rio Uruguai, localizada no Parque Estadual do Turvo, no município gaúcho de Derrubadas. Com 1.800 metros de extensão é considerado o maior salto longitudinal do mundo.

VAZA: Vez, oportunidade.
.
ALCUNHOU-ME: De alcunha; apelido. Apelidou-me

ESTROPIADO: Diz-se do animal sentido dos cascos, com dificuldade de andar em conseqüência de marchar por estradas pedregosas.

CHINA: Descendente ou mulher de índio ou pessoa do sexo feminino que apresenta alguns traços característicos étnicos das mulheres indígenas. Mulher morena. Mulher de vida fácil. Esposa.

QÜERA: Homem destemido, desabusado. Pessoa valente.

ALAMBRANDO: De alambrado. Aramado. Cerca feita de arame para manter o gado nas invernadas ou potreiros. Cerca. Alambrando: Construindo uma cerca.

RETOVADO: Embora no Rio Grande do Sul possa ter o significado de falso, fingido, aqui Juca usou o termo para significar grande, crescido, mas manhoso. (Definição do Anfitrião da Torre).

JUNDIÁ: Peixe de água doce. Nome vulgar de diversos gêneros de peixe.

ENCILHA: Apertar a cilha (no cavalo). Conjunto de apetrechos para montaria. Montar de encilha: Montar o cavalo devidamente preparado para tal, com segurança.

PLANCHEAVA: Caía de lado.

ESTRUPÍCIO: Pessoa feia. Pessoa esteticamente desacertada, esquisita.

ESTÂNCIA: Estabelecimento rural destinado à cultura da terra e, sobretudo, à criação de gado vacum e cavalar.

AMANUNCIAR: Amansar um cavalo sem o montar. Domesticar um animal, tirando-lhes as manhas por meios brandos, sem o molestar.

APORRIADOS: (Aporreados): Cavalo mal domado, indomável, que não se deixa amansar. Aplica-se também ao homem rebelde.

LIDAR COM TENTOS: Tentos: Tiras de couro de gado vacum que depois de curtido ao sol são usados para a feitura de diversos apetrechos para o trabalho no campo. Lidar com tentos: Trabalhar o couro, já curtido, para a confecção de apetrechos da lida campeira, como laços, rédeas, e outros para “encilhar” o cavalo.

POUSO: Pernoite. Vir para o pouso: Vir para pernoitar.

QUERÊNCIA: Lugar onde alguém nasceu, se criou ou se acostumou a viver, e ao qual procura voltar quando dele se afasta.

CANHA: Corruptela de cana. Aguardente de cana. Cachaça.

CAPENGA: Coxo. Manco.

TALUDO: Crescido, grande, desenvolvido.

ENRABICHAR-SE: Enamorar-se, apaixonar-se.

BALDRAME: Viga de madeira, ao rés do chão circundando toda a casa, que, pelo lado de dentro, fica saliente se não houver revestimento interno.



14 comentários:

Anne disse...

Hahahaha, esse Juca é mesmo uma figuraça!!! Voltarei pra ler mais causos dele, mas mesmo sendo aqui do sul, me perco em alguns termos do gauchês. Bendito google que nos salva a todos...rs.

Ficou linda a foto, acho bom mesmo tu combinar as cores com o layout novo, tá lindo (e nem é pq fui eu q montei, ele tá lindo mesmo). A Lu me ajudou mto a escolher as cores e detalhes, sem ela não teria ficado tão bom!!!

Fiquei feliz em ver meu nome mencionado, fiz de coração. Precisando de ajuda em algo, conte comigo.

Sobre a gaita, pode tocar sim, mas respeitando o horário. Sabe como são os vizinhos... melhor não testar a paciência deles. Ahhh, e nada de tocar o hino do internacional, senão desmorona a torre de tanto desgosto...hahaha

Beijos pra vc e para o nosso querido Juca Melena, figuraça ele! Deve ser amigo do Analista de Bagé...hahaha

Até a próxima!

Quasímodo disse...

Pois é, Anne. Não foi só tu quem reclamou. O Juca tem um palavreado que é difícil de entender para quem não o conhece direito.
Asseguro-te no entanto, que são termos regionais, do Rio Grande do Sul.
Há, no seu linguajar, uma mescla de português, espanhol e guarani.
Para tentar amenizar o problema estou trabalhando para montar um dicionário, ou glosário, no final da página, no intuito de trazer para a língua culta, as palavras que não nos são familiares.
Quanto aos fatos históricos eu conferi: São verdadeiros e corretos os lugares, nomes e datas. Quanto à sua presença nesse eventos, tenho dúvidas. Mas enfim, deixemos contar.
Abraço, amiga.

uns... disse...

como disse a anne, figuraça mesmo esse juca. dá até vontade de procurar um cantinho assim meio escondidinho, só p/ ficar prestando atenção nos causos dele.
será que se eu ficar ali atrás daquela cortina, alguém vai notar minha presença?
como terei nas mãos o dicionário, espero que o som da gaita abafe o som do virar as páginas.
beijos, quasi
beijos, juca
beijos, anne

Anônimo disse...

Bah!
Gostei muito das mudanças..e do texto!
Como eu disse,no flog do Henrique,minha vida barriga verde se funde com as vivências gauchescas...rs
Tenho muitas histórias que envolvem gaúchos,suas tradições e seu "dialeto"...rs
A próximidade me fez um pouca gaúcha...algo que nunca será esquecido!
.
Bela postagem!
Beijos...
.

Retalhos disse...

Olá , meu amigo
Sabia que seria assim, tinha toda certeza
Tua sensibilidade, inteligência, tua forma de ser; marca registrada de uma pessoa muito especial
Olha, sentei-me em um cantinho e cheguei a ouvir a voz carregada de "sutaki" do Juca.
Parabéns
Abraço de carinho

Quasímodo disse...

Obrigado, amiga Lu.

O termo "alcunhou-me" já foi devidamente incluído ao Glossário.

Quanto ao enrabichar-me, "me representa" que não.

Beijo, amiga...

Anônimo disse...

glub glub glub
haja guelras e barbatanas, mas enfim cheguei.....dando uma vista d'olhos por enquanto. Corcundinha krido, muito obrigada por dar-me a conhecer a Torre.
baijos

Anônimo disse...

errrrrrrrrrrrrr
eu nem sei cumaé qui se bota comentário acá.........
que vurra!! hahahahahah

Unknown disse...

Ameiiiiiiii! Isso é o nosso Rio Grande, a nossa herança, por isso o orgulho que temos da nossa herança.
Tambem vou sentar no cantinho, pra ler mais histórias do Juca.
Beijos
Betânia

fá... disse...

_____que deleite!!! ler o Juca, enriquece qualquer idioma, vem como um dicionário de descobertas. adorei. e serei eu uma eterna ouvinte dos causos dele.
pena que só o lei...bom seria ouvir, imaginando aqui a entonação e os trejeitos...
adorei, meu camarada querido!
adorei!!
,
beijos.

Retalhos disse...

Passando pra reler.....amo esses "causos"...é preciso reler....e ficar sentada em meu canto..a espera de um novo "causo"....com perfume de mate.
Beijo meu querido.

Quasímodo disse...

Percebi que Juca Melena está a roubar a cena do corcundinha Quasímodo.
Periga Quasímodo cometer um jucacídio por pura inveja ou despeito.
Considero, no entanto, remota a possibilidade de concretização desse desiderato.
Além de amigos e compadres (por consideração) atuam em áreas distintas e não conflitantes.
Quasímodo é universalista e prolixo; Juca regionalista e direto.
A menos que ambos enrabichem-se pela mesma china...

Meu carinho, abraço e agradecimento à todos que por algum momento abrigaram-se na Torre. Aos que só sorveram das Letras e aos que também ajudaram a moldá-la com as belas palavras aqui postas.

Anônimo disse...

bem..o que dizer desse "causo" de Juca?Fantástico! Adorei ainda mais vinda com a "tradução"...rss E sei que me deliciarei ouvindo outros causos.
Mas bem sabe querido Quasímodo, que já havia passado por aqui, mas teria que reler tudo para poder interpretar melhor.. e agora volto prá dizer que não só reli o Juca, mas prá dizer que A Torre está linda e que Quasímodo, não perderá seu lugar. Ele é seu, é nosso também...bom estar aqui.
bj*

Gata de Rua disse...

Juca Melena,gaudério..é o chão, a raça e alma de um povo...quase posso vê-lo, ali , na venda, enrolando o palheiro, olhar meio perdido,,guéla ardida da pinga de cana da roça do cumpadre Gervásio....
Bah, moço, tu me fazes sonhar....

 
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