Nas décadas de 70 e 80, era obrigatória nos meios acadêmicos e democráticos a leitura da revista Cadernos do Terceiro Mundo. Ao menos dentre aqueles que se consideravam “consequentes”.
Criada na Argentina em 1974 por um grupo de jornalistas exilados que combatiam os regimes ditatoriais em seus países, tinha no seu corpo diretivo principal, o brasileiro Neiva Moreira, o argentino Pablo Piacentini e a jovem uruguaia Beatriz Bíssio.
Diferentemente de outras publicações de esquerda ou mesmo de resistência democrática, Cadernos não tinha um caráter panfletário ou de incitamento. Antes pelo contrário. Apesar da sua linha editorial ser francamente anti-ditatorial, terceiro-mundista e anti-imperialista, não se deixava enredar pelo simplismo da dualidade da guerra fria. Suas matérias e reportagens aprofundavam os temas cruciais dos países não-alinhados.
Como toda publicação não subvencionada, sempre esteve às voltas com dificuldades financeiras até que deixou de circular por volta de 2007.
Neiva Moreira voltou ao Brasil após a anistia. Atuou no PDT, partido fundado pelo seu amigo Leonel Brizola e na sua terra, o Maranhão, ao lado do governador Jackson Lago até este ser cassado pelas forças oligárquicas daquele estado.
Pablo Piacentini exerce seu trabalho de cientista político e jornalista na Argentina e Beatriz Bíssio mudou-se para o Brasil, onde igualmente é jornalista.
Estas são as informações que tenho, no momento, desses protagonistas e podem estar carentes de atualização.
Foi numa edição de Cadernos do Terceiro Mundo que li pela primeira vez sobre a Líbia de Kadafi e a sua proposta de Revolução Verde.
Kadafi assumira o poder em 1969 quando um grupo de oficiais nacionalistas, derrubou o rei Idris I, líder religioso sanusi, coroado rei após a Segunda Guerra Mundial.
Kadafi, então coronel, presidia o Conselho da Revolução e criou a Jamairia (República ou “Estado das Massas”) Árabe Popular e Socialista da Líbia, com forte alinhamento político-ideológico com o Pan-Arabismo, movimento que propunha reunir os países de língua árabe em torno de seus objetivos comuns.
Com fortes medidas nacionalistas, Kadafi expulsou os efetivos militares estrangeiros, nacionalizou as empresas, os bancos e os recursos petrolíferos do país. Com os recursos daí advindos, a Líbia tornou-se, até antes da recente guerra civil, o país com maior índice de desenvolvimento humano da África, segundo a ONU.
A revolução cultural, social e econômica desencadeada por Kadafi, gerou graves tensões políticas com os Estados Unidos, Inglaterra e até mesmo com os países árabes moderados, como Sudão, Egito e Chade.
A invasão por parte da Síria e do Egito à Israel na chamada Guerra do Yom Kyppur em 1973, motivou Kadafi a evocar os conceitos do Pan-Arabismo, já que a vitória israelense nessa guerra deveu-se muito ao fornecimento, por parte de alguns países árabes moderados, de combustíveis para a máquina de guerra de Israel.
O uso do petróleo como arma gerou uma das maiores crises energéticas de toda a história. Curiosamente despertou nos países importadores a necessidade de buscarem novas fontes de energia, como a nuclear, a eólica, a hídrica e a descoberta de novas reservas petrolíferas nos Bálcãs, na África (notadamente em Angola) e na América Latina (Venezuela e Brasil), e o uso de fontes renováveis como a bem sucedida experiência do álcool no Brasil, esvaziando os países árabes daquilo que seria o seu maior trunfo.
O sonho de Kadafi de expandir a Revolução Verde, assim entendido a auto-suficiência agrária, o pan-arabismo, a eliminação da influência ocidental, sob a bandeira verde de Maomé, começa a frustrar-se quando em 1982 os Estados Unidos impuseram um embargo às importações de petróleo líbio.
Agora de forma mais aberta, Kadafi começa a apoiar organizações como a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) e, segundo acusações americanas, a patrocinar e estimular o terrorismo internacional. Em 1986 Ronald Reagan ordena um bombardeio da aviação americana a vários alvos militares em Trípoli e em Bengazi. Kadafi se mantém no poder, apesar da morte de sua filha adotiva quando sua casa foi bombardeada, mas começa a perder seu prestígio internacional, inclusive diante dos demais países árabes.
A partir de 1990 o governo líbio procura restabelecer as relações com as potências ocidentais e com os países vizinhos. Adotou uma posição moderada quando da invasão do Kuwait e, posteriormente do Iraque. Mesmo com esta posição de neutralidade, a Líbia continuou sob forte isolamento internacional. Em 1992 a ONU impôs um embargo ao comércio e ao tráfego aéreo líbios, porque Kadafi se negava a entregar dois terroristas líbios acusados do atentado a um avião de passageiros sobre Lockerbie, na Escócia, quando morreram 270 pessoas em 1988.
A década de 90 caracterizou-se pelo afastamento de Kadafi dos antigos aliados; do Irã pelo recrudescimento do fundamentalismo islâmico; dos Palestinos pela disposição destes em negociar uma paz com Israel.
Em 1997 seis oficiais do exército líbio foram fuzilados numa tentativa de Kadafi de acabar com a crescente resistência de grupos religiosos islâmicos ao seu governo.
No bojo das manifestações populares que assolaram os países árabes desde o começo de 2011, a Líbia caminhou rapidamente para a guerra civil, fomentada, de um lado, pelo apoio aos rebeldes por parte dos Estados Unidos, Reino Unido e França, escudados sob a bandeira da OTAN e de outro pela reação truculenta das forças leais à Kadafi contra os manifestantes.
Estaria por trás deste apoio ocidental aos rebeldes, uma revisão que Kadafi havia feito nos contratos de exportação de petróleo pelas companhias petrolíferas estrangeiras, na sua maioria americanas, inglesas e francesas, na tentativa de estabelecer no país um governo mais favorável aos seus interesses.
No dia 20 de Outubro de 2011, Kadafi foi morto em Sirte e no seu lugar assumiu uma frente oposicionista denominada CNT – Conselho Nacional de Transição.
É de se questionar: Se a Líbia era o país com maior desenvolvimento humano da África, porque a Revolução Verde fracassou e teve este melancólico desfecho?
Creio firmemente que fracassou pelos mesmos motivos pelos quais fracassaram todas as revoluções de caráter popular e socialista. O nacionalismo exacerbado e a formação de uma casta dirigente rica e distanciada de seu povo, tornando-se invariavelmente em seus algozes, tal qual os porcos da Revolução dos Bichos de George Orwell. Não tenho conhecimento de nenhuma revolução que tenha fracassado somente pelos ataques e boicotes externos. Ou ela fracassa pelo seu fechamento em si mesma, ignorando o seu caráter internacionalista, como fazem a Coréia do Norte e a Albânia ou são derrotadas pela incompetência de seus dirigentes que se estabelecem acima da própria revolução. Ou pelos dois motivos sobrepostos.
Cabe, neste ponto, a assertiva e a pergunta: Kadafi está morto. E agora?
Vai depender muito de qual grupo prevalecerá dentro da CNT, pois é sabido que essa frente é integrada com bastante representatividade, pelos fundamentalistas islâmicos, que Kadafi já temia ao romper com o Irã em 1993.
No contexto regional, dentre os países árabes, somente a Arábia Saudita permanece como um aliado confiável e fiel da balança em favor do ocidente. Mas também lá já há um recrudescimento da oposição ao rei Abdallah.
Se nas lutas internas pelo poder na Líbia, Egito pós Mubarak, Síria e outros países árabes, inclusive a Arábia Saudita, prevalecer os grupos islâmicos fundamentalistas e radicais, somando-se ao Irã dos Aiatolás, o Pan-Arabismo poderá ser reeditado em outros moldes, aí sim, comprometendo a influência ocidental na região e até mesmo a própria sobrevivência do estado de Israel como nação.
Não sei o que diria Cadernos do Terceiro Mundo sobre este assunto e a análise que faço. Gostaria muito que Neiva Moreira, Pablo Piacentini e Beatriz Bíssio opinassem. Mas seria muita pretensão minha.
Finalizando (e já não sem tempo) se afirmei acima que o desenvolvimento de fontes alternativas de energia e a descoberta de novas reservas de petróleo distenderam a pressão dos países árabes sobre o ocidente, o que então justificaria essa preocupação intervencionista da OTAN sobre a Líbia?
Convém não esquecer que a Líbia, além do Egito, o Chade e o Sudão, isto é quase toda a parte oriental do deserto do Saara, dorme sobre a maior reserva de água subterrânea do mundo, avaliada em 150.000 km3 de água, o Sistema Aquífero Arenito da Núbia. Se para o petróleo há fontes alternativas, para a água não as há.
E como alerta, convém também não esquecer que o Brasil tem a Amazônia e o Aquífero Guarani.
Fontes de pesquisa: Wikipédia / Café História / Cadernos do Terceiro Mundo.
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9 comentários:
Clóvis, amigo, ainda não tinha lido análise tão perfeita sobre o tema Líbia/Kadafi. Queria ter o seu gabarito para discutir o seu questionamento.
Prometo que vou "catar" alguma manifestação jornalística dos três citados por você.
O ideal é que esse seu artigo fosse publicado em jornal de grande circulação(?)... Pretensão, voce pode ter, em ser respondido por eles, ou ao menos pelo brasileiro, Neiva Moreira.
Voce fechou com o texto com chave de ouro, com´os dois últimos parágrafos.
Grande abraço!
Amiga Lúcia.
Obrigado pelos teus elogios ao texto. Como está escrito no subtítulo este é um espaço onde procuro lançar um olhar crítico, poético, eqüidistante (faço questão de manter o trema) ou engajado, sobre traseuntes, fatos e mundos. Pode, e certamente não é, um olhar unânime por parte de quem me dá o prazer de visitar a Torre. E nem pretendo que o seja.
Quanto à Neiva Moreira, a última notícia que tive dele é a de que, logo após a cassação de Jacson Lago de quem era acessor direto, adoeceu gravemente e foi hospitalizado. Nada mais soube dele. No entanto, as forças oligárquicas que o derrubaram junto com Lago, estão mais atuantes que nunca, vide o clã Sarnei.
Grande abraço, amiga.
Um adendo: Ele tinha já mais de 90 anos.
Sobre o mundo árabe, eu deixo para as amigas e amigos que conhecem com profundidade o assunto. Minha terra, Curitiba, é diplomata, deixamos a cada povo que reflita sobre as suas questões. Não comentaria melhor que nenhum deles. Grata pela sua visita ao meu blog. Um abraço, Yayá.
realmente uma excelente análise.
parabéns pelo seu espaço.
Abraços.
Clóvisamigo
Magnífica abordagem de um tema muito complicado e, por isso, muito difícil.
Porém tu, como sempre, tens uma cumplicidade com a análise - e está tudo dito.
Tudo, não. Porque a questão árabe ainda mal começou. Daqui em diante, se as mentalidades não se adaptarem (não digo se modificarem) tudo será diferente.
Não gostava de Kadafi que, aliás, conheci pessoalmente; fez a Líbia avnçar, mas era um ditador do pior coturno.
Falas do Pablo Piacentini, do Neiva Moreira, da Beatriz Bíssio que também conheci em Roma, quando visitei os Cadernos. Que, na altura, eram a verdadeira bíblia do Terceiro Mundo.
Ali fui por sugestão do Mário Djusisic ainda hoje felizmente vivo e vivendo aqui em Portugal. Depois, ainda escrevi para os Cadernos. A vida tem destas coisas...
Abç
Henrique;
É muito provável que eu tenha lido teus escritos nos Cadernos, pois eram poucos os números que eu não tinha.
Infelizmente eles foram se perdendo mo decorrer das muitas mudanças que fiz, algumas sem muito tempo de arrumar malas.
Cadernos do Terceiro Mundo tinha correspondentes e colaboradores espalhados pelo mundo.
Através dos Cadernos iniciei uma série de correspondências com um jovem de Benguela, em Angola, numa época em que não havia internet. Depois de cerca de um ano essas correspondências se interromperam e não foram mais retomadas. Não pude descobrir o que teria havido com o jovem angolano. Temo que a guerra o tenha absorvido.
Como dizes tu, a vida tem destas coisas.
Abraço, Henrique.
Como sempre tens uma lucidez nas suas colocações que me encantam.
Assunto tão delicado abordado maravilhosamente bem por você, parabéns.(Fiuuuuu Fiuuuuu )
Eliete, minha querida amiga Lili, de tanto tempo.
Fiquei imensamente feliz de te reencontrar aqui, depois de tantas voltas que o mundo deu.
São tantos os assuntos a atualizar que o melhor é enviar-te um e-mail, o que farei logo.
Por ora, deixo-te um beijo. Ou como dizias... bjssssssssssssssss.
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