domingo, 10 de abril de 2011

O gatinho cego

Havia um gato cego na varanda.

Nascera ali, numa ninhada de mais quatro gatinhos que se foram logo. Primeiro um, o que pelo tato do focinho percebera que era o mais peludo. Depois foram outros dois de uma vez só. Por último a gatinha magra com quem brincava de morder o rabo.

Ele ficou na varanda, imaginando o mundo e vivendo no mundo imaginário que inventara. No começo o calor do corpo da gata-mãe e o leite quentinho que ela lhe dava pareciam ser tudo o que existia. Logo percebeu que a sua teta era a segunda, contando na fileira de baixo a partir do ronronar audível da mãe. Notou que ao seu lado, na primeira teta mamava um irmãozinho peludo e a sua direita dois outros, que não sabia bem distinguir o pelo. Acima dele, na teta do meio da carreira de cima, apoiando-se nele com as perninhas finas, mamava uma gatinha. Ele sabia que era uma gatinha pelo seu cheiro e seus modos diferentes dos modos dos gatos que mamavam ao seu lado; suaves, delicados, femininos.

Depois eles se foram. Levaram eles. Escutou dizerem:

- Olhe este é bonitinho, todo raiado.

– Não, eu prefiro aquele, peludinho.

Depois levaram os outros dois. Falaram:

- Só temos este raiado e aquele, mourisco. Tem também a gatinha e o gatinho cego.

- Levamos os dois, então. Não queremos a gata e o gatinho cego, de que nos servirá? Não saberá interagir com as crianças...

A gatinha que mamava na teta de cima não escutou levarem. Ele acordou numa noite, porque para ele sempre fora noite, e não mais a encontrou para brincar de morder o rabo.

Depois a gata-mãe rareou as lambidas de carinho, até que sumiu de vez. Ele ficou na varanda conhecendo que seu mundo se limitava a uma parede de um lado e um abismo pressentido do outro. O limite concreto da parede e seu medo abstrato do abismo não o impediam de ser alegre e brincalhão como todo gatinho sabe ser. Aprendeu que, ao sentir o cheiro de frituras e o burburinho de vozes, logo viria a comida apetitosa que alguém lhe lançava no pratinho, e que comia com voracidade.

Um dia, em que ouvira vozes infantis, deixaram esquecidos na varanda um chocalho quebrado e uma bolinha de plástico. Tateou até encontrá-los e passou a brincar com eles. Adorava ouvir os sons dos guizos e rolar a bolinha junto à parede, cuidando para que não lhe fugisse para além do limite do abismo.

Aprendeu a encontrar o sol pelo calor de seus raios e ali ficava deitado a aquecer o corpo. Quando esfriava, dormia sobre o pano de lã que estava a um canto da parede.

Ouvia o rufar de asas e pressentia o movimento alegre de passarinhos bem próximos, que disputavam os farelos da ração que sobrara no pratinho.

Então ontem, no meio da tarde, quando brincava com a bolinha de plástico, escorregou no piso da varanda e não podendo parar a tempo, chocou-se com a parede. Bateu a cabeça e ficou tonto, aturdido. Quando, aos poucos, foi recuperando os sentidos, notou que já não era o mesmo. Uma luz forte lhe ardia os olhos. Imagens que antes só eram imaginadas foram se formando. Viu que a parede era apenas um muro que se poderia alcançar o topo com um pequeno salto. Viu que acima brilhava um céu de azul intenso e que no meio dele ardia uma bola de fogo cujo amarelo dos raios lhe aquecia. Viu que o abismo imaginado era mesmo real e que estava cercado por uma tela de malhas finas e que não era mais alta que o muro em que batera a cabeça. Havia um vaso de flores sobre a tela, lá, na outra extremidade.

Ainda aturdido e confuso, passou o resto da tarde a explorar a varanda. Encontrou o velho chocalho que há tempos não brincava, e notou que ele estava quebrado.

Então escureceu e ele teve medo, pois nunca havia escurecido em sua vida depois de ter visto a luz. Aninhou-se no pano de lã e viu que ele era roto e sujo.

Ali ficou, observando a escuridão e os pequenos pontos luminosos que apareceram no céu, antes azul. Dormiu pouco e no pouco que dormiu pesadelos o atormentaram. Ora era a bola de fogo que lhe devorava, ora era a folhagem do vaso que ao balançar com o vento, raspava na tela e fazia ruídos horripilantes.

Viu que voltava, aos poucos a clarear, e que o burburinho de vozes se tornava audível novamente. O medo já não era tanto. Sentiu o cheiro gostoso e percebeu que tinha fome. Seguiu o cheiro e pela porta entreaberta viu uma mesa onde fumegavam xícaras de café e reluziam nos pratos apetitosos nacos de presunto. Quis entrar mas lhe enxotaram com rispidez. Jogaram pela janela uma porção de ração no seu pratinho. E então ele percebeu que a ração não era saborosa como antes, e que o cheiro gostoso que sentia não era dela, mas da mesa que vira pela porta. Não teve vontade de comer daquela ração, mas do que vira sobre a mesa.

Um pardal chegou do ar por sobre a tela e veio bicar os nacos de ração, a seu lado. Quis brincar com ele, mas ele fugiu assustado por sobre o parapeito da tela de onde viera, e sumiu no horizonte. Então o gatinho percebeu que havia montanhas azuis no horizonte e que antes delas subia um balão colorido de faixas amarelas, verdes, vermelhas... e sua bolinha de plástico ali, tão desbotada e murcha!...

De um salto, galgou o parapeito da tela e sentiu as montanhas tão próximas que quase daria para tocá-las com o focinho. Tomou um novo impulso e saltou para elas.

E caiu no asfalto da rua, quatorze andares abaixo.

O pardal, que ainda esvoaçava pela praça, comentou pesaroso:

- Gato doido!... Parecia tão feliz lá na varanda. Será que pensou que tinha asas como eu?...

Um sabiá laranjeira, pousado num galho próximo, murmurou mais para si mesmo que para qualquer platéia:

- Não, amigo pardal. Ele abriu os olhos e viu que o mundo era maior que a sua varanda.



Fotos:


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6 comentários:

Graça Sampaio disse...

Estes contos com animais dão-me cá uma tristeza! Assim ao jeito do Bernardim Ribeiro com o seu pardalito. Acho que é um sentir português.

Mas está muito bonito.

Quasímodo disse...

Verdade, Carol. É um sentir universal. Porém desde La Fontaine contos com animais trazem, subliminarmente, alguma mensagem, não necessariamente moral.

Obrigado pela visita e fica o convite para voltares sempre.

M A R I Z A disse...

Eu imaginei até a cor do piso da varanda, concordo com a Carol sobre contos com animais, mas este em especial teve momentos que me senti o principal personagem na história...Será porque?... só um psicólogo para informar..rs
Quasímodo um super abraço.

retalhos disse...

Amigo, há muito não passava por aqui. Porque, não sei , resposta não tenho.

Mas a cada volta, sempre uma riqueza.
Riqueza melancólica, que me induz a rever "cegueiras".
Ainda me situando.

Deixo meu carinho de sempre.

Unknown disse...

Corcundamigo

Desde o Paleolítico Superior que não nos encontramos; não pode ser. Ainda morro de saudades e não há Esmeralda que me valha...

Não conhecia Horácio Nogueira e creio que não está publicado em Portugal. Mas, depois do que me (nos) ensinas sobre ele, vou tentar comprar O Índio Penhái. Pensas que o poderei fazer pela Internet? Dá-me uma informação, sff. Obrigado

Abç

PS - A Travessa continua viva...; pelo menos, mexe-se...

disse...

Oi,Quasímodo!
Venho agradecer, ainda que com atraso, os votos de Feliz Páscoa e antecipar um Feliz Dia das Mães (não sei se ainda tens a sua, porém, mãe será sempre parte de nós...).
Falando em mãe,este texto conta um pouco da mãe-gata e, mesmo que ela tenha dado o carinho necessário, foi por um tempo finito, logo o filhote precisou descobrir o mundo por si. Que bom tê-lo arriscado, pois, ainda que o mundo nos meta medo, é preciso crescer, descobrir, ganhar "asas", só assim é possível saber o limite que podemos cruzar.
Boa reflexão!
Bjins e até!

 
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