Talvez menos para nossos pais, já mais vividos e conhecedores do mundo, mas para nós, pirralhos, cujo mundo se limitava ao café da manhã com ovo frito, revirado de feijão e um dia inteiro de muito mato pela frente.
Encontrar amoras maduras, guabirobas, era a nossa missão. Empanturráva-mos de frutas, mas sempre guardáva-mos a maior e mais bonita para levar para a mãe.
Siá Olímpia chegava sem avisar, vinda não se sabe de onde. Simplesmente chegava e se estabelecia.
Miúda, carregava pouco. Um ou dois sacos surrados com poucos pertences dentro; uma muda de roupa invariavelmente preta como a que vestia e ervas colhidas no caminho para fazer chá para qualquer cura, desde lombrigas a mau olhado.
De fala mansa, com leve sotaque lusitano, junto com as ervas para os chás, trazia rezas e benzas. Dizia ter aprendido com um tal de “Jujo Idéia!”.
(Um parêntese: já agora, conversando com um casal de idosos do lado catarinense do rio Uruguai, numa pesquisa de campo para a história dos balseiros, ouvi novamente referência à Jujo Idéia. Não consigo ainda entender bem, pois há uma mistura nos relatos simples, de fatos históricos que envolvem Jesus Cristo, Dom Sebastião e o Espírito Santo, e João (ou José) Maria, líder dos caboclos pobres na guerra do Contestado).
Voltemos ao relato...
Siá Olímpia falava de João Maria e Jujo Idéia como se reverenciasse um santo. (Seria ele o mesmo da guerra do Contestado?).
Ela ficava dias lá em casa. Às vezes meses. Ajudava a mãe nas fainas domésticas, buscava água, escolhia feijão, lavava roupas... e depois se ia, tão misteriosamente quanto chegara.
Quando o pai comprou um rádio, um dos primeiros da região, (Scala... do tamanho de uma vitrola que vocês, os mais antigos, conhecem) a família e alguns vizinhos se reuniam na noite de domingo, para ouvir o “Grande Rodeio Coringa” transmitido pela Rádio Farroupilha, de Porto Alegre.
Depois desse programa tinha uma novela radiofônica.
Os vizinhos penetras eram incentivados a irem embora por causa da roça no mato, e nós, pequenos, com chineladas a ir para a cama.
Ficavam lá os adultos, pai, mãe e Siá Olímpia a escutar a rádio-novela. Mas o cansaço e o sono abatiam Siá Olímpia ainda no meio do enredo. A mãe então a acordava e a levava para a cama.
No dia seguinte, curiosa, ela perguntava sobre as duas únicas possibilidades de final da novela:
- Casou ou morreu?...
__________
Sonhei com Siá Olímpia esta noite.
-0-
Numa tarde, já distante no tempo, um tio, o João Pinto, ao passar por uma estrada poeirenta, encontrou-a morta encostada ao barranco.
Tinha ao seu lado o saco de ervas e vestia a roupa preta de sempre. Mortalha que carregara em vida.
_______________
4 comentários:
Caro amigo... Que belíssima história! Ah, como esses causos me encantam! Escreve mais.
Siá Olímpia, que figura...livre e sábia.
A rádia, conheci bem...rss
Escrevestes lindamente o texto!
Beeeijos!
Tive em minha infância , alguém pitoresco e marcante como Siá...era a "Belém Gondem"....por andar carregada de medalhas nos braços e pescoço...tínhamos muito medo dela....e ..ao mesmo tempo nos encantava...
Qto às famosas caixas de abelha, tínhamos lá na sala de jantar em lugar de destaque...era o luxo de nossos poucos anos...
Obrigada meu querido amigo, pelo momento de tãos doces recordações...transportei-me ao passado em suas linhas...
Beijo amigo!
___ em andando por aqui, senti o cheito do mato, do ovo frito e o revirado de feijão que damos o nome de viradinho...rs*
guabiroba fez parte da minha infância, e o que mais me encantava nem era o gosto - que era bom - e sim o cheiro e o prazer de colher a frutinha miúda do pé - que se não me engano, era anão..rs*
acho, querido camarada, que todos nós temos uma Siá Olímpia a nos espreitar pela infância, acredito mesmo que nenhuma infância passa impune.
fiz parte da sua linda lembrança.
.
respiro e a realidade, hoje, é outra. saudade danada de um tempo que tatuou a gente.
.
beijos.
'
vim, uma vez mais, visitar a siá olímpia. e uma historinha tão gostosa, tão com gosto de antigamente, que desperta tantas lembranças...
delícia isso.
beijo
'
Postar um comentário