domingo, 23 de agosto de 2009

Escrever e Viver

O Hábito Saudável da Leitura

Navegando por aí, encontrei este lindo depoimento ,que repasso a vocês:
http://www.geocities.com/ceturho/sd1.htm


ESCREVER E VIVER

A revista "FAZENDO ESCOLA", publicada pela Secretaria Municipal de Cultura de Uberaba, Ano 3, no 6, a belíssima carta enviada por Bartolomeu Campos Queirós, conhecido autor de livros infantis a Vânia Resende. O conteúdo da missiva mostra bem a todos nós o que é escrever, em termos de vida e arte. Por isto, a mesma será transcrita na íntegra no presente trabalho, como ponto de partida das reflexões que se colocam para o professor de língua materna, no dia de hoje:


Belo Horizonte, 14.07.96


Vânia, amiga minha,


Por muitas vezes tenho afirmado que as palavras são portas e janelas. Se me debruço e olho, inscrevo-me na paisagem. Se destranco as portas o enredo do mundo me visita. Vivo, hoje, desse privilégio de me estar somando ao mundo pela leitura e de me estar dividindo pela escrita. Escrever é arriscar-se, ao tentar adivinhar o obscuro, enquanto ler é iluminar-se com a claridade do já decifrado.


O gesto definitivo da escola sobre a minha vida foi o de não me ter afastado do prazer de ler e escrever. Minha professora, livro às mãos, encerrava as aulas remetendo-nos a outras geografias, novas histórias, belas linguagens. Sem receio do tempo e segura quanto às funções da literatura, ela exercia o magistério descontextualizando-nos, oferecendo-nos caminhos alternativos para outras viagens, não deixando morrer a nossa curiosidade infantil, fazendo nascer em nós, mais e mais desejos.


Desse momento em diante, jamais estive em irremediável solidão. Há sempre ao meu lado, um livro sem nenhuma força inibidor, sem exigência ou cobrança, surpreendendo-me com o ainda insuspeitado. E pode a educação fazer mais pelo homem do que remediar a sua solidão? Nascer é ganhar o abandono, é inaugurar a perda e estar só até o momento da própria morte. Vejo duas sortes de solidão: uma que inibe e outra que desafia. Padecendo da primeira, o homem se vê só, e sem força movedora para encontrar se nas relações; se fecha e sofre. Na segunda, a dor é menor. Mesmo sabendo-se condenado à solidão, o sujeito procura, busca, insiste em estar-com, consciente da impossibilidade da completude.


Não é tarefa simples para a escola, essa de formar leitores. É necessário, antes, ser uma escola leitora, capaz de ler a cultura do mundo para bem selecionar o seu conteúdo curricular. Ela é um apêndice da cultura. Ela só romperá o cotidiano se tomar posse do conhecimento produzido anteriormente. Mas muitos dos seus reponsáveis consideram a cultura como matéria de um programa, como se isso fosse possível ou inteligente. Tal atitude evidencia a sua pouca capacidade de ler. Suspeito, minha amiga Vânia, que assim sendo a nossa cidadania será sempre cega, exercitada, comprometida com o modismo e não movida por uma força advinda do reconhecimento, pelo homem, de sua própria dignidade. A escola usa a leitura apenas com a perspectiva de somar "saber". E ler pelo prazer de ler possibilita-nos o saber como acréscimo e a felicidade como objetivo.


Vânia, o mundo é um imenso livro sem texto; ou melhor, um intenso texto. Leituras e escritas são, pois, atividades inerentes ao homem. Fascinante é ainda certificar se de que esse livro foi criado a partir da Palavra. Foi dizendo faça-se a luz, façam-se as águas, faça-se o firmamento, que tudo se fez. A palavra, de fato, realiza aquilo que prenuncia. A escola; sempre, impede o aluno de escrever a sua legenda sob esse livro, como seleciona as legendas que devem ser lidas, de acordo com a sua conveniência. (Não acredito em escola de conveniência ou de busca do equilíbrio. Ser educado é existir no plural. É apreender que tudo tem vários prumos, inúmeros pontos de vista. múltiplos significantes e muitos tantos valores. É suspeitar que dois mais dois só são quatro quando a sociedade é justa). A escola é servil e está sempre a serviço de determinados caprichos. Daí a liberdade ser considerada, por ela como um privilégio que ela outorga e não como uma exposição incondicional para se educar. Ser educado é praticar a liberdade com o refinamento próprio daqueles que descobriram os limites da humanidade. Não se é livre sem cuidados. E a leitura, dentro de seus propósitos maiores, só é possível na liberdade. Todo meu interesse está em afirmar que não há cidadão sem leitura.


Sou escritor, como você bem sabe, e muito lhe agradeço o carinho e rigor com que você vem reconhecendo a minha obra. Falo, pois, como aquele que busca ler o mundo e registrá-lo na tentativa de dividir a minha perplexidade diante do que a vida humana pode vir a ser. Se uso da fantasia sei que fantasiar é deixar vir à tona o que há de mais próximo da minha intimidade. Fantasiar é confidenciar, é refutar a mentira, é o falar com a mais provisória das verdades. Octávio Paz diz que "quem coloca convicções próprias como serrado a verdade absoluta e as instrumentaliza politicamente, torna impossível a convivência livre das pessoas". Neste sentido, a presença da literatura se justifica só por si. Ao só existir permitindo que o leitor preencha o silêncio entre as palavras com a história pessoal, ela é definitivamente democrática. Daí a importância de se formar uma rede nacional de leitura.


Minha amiga, tenho lido nesses dias um trabalho de Françoise Doito chamado "Tout est Langagage". Falando a educadores, ela confirma que para construir e humanizar a sociedade é fundamental cultivar as diferenças. Ela conta um fato simples que bem pode resumir esta carta: "Quando uma criança deseja um brinquedo que não existe, ela o inventa. Um pedaço de qualquer coisa é o seu avião. Mas se lhe dermos um avião, ela vai rapidamente quebrá-lo, pois ela não terá nada a imaginar".


A literatura deixa espaço para o leitor imaginar e apropriar-se dele com as suas vivências, seus sonhos. Ela acorda, no sujeito, dizeres insuspeitados e redimensiona conceitos. É um jogo de invenções e possibilidades. É maior e mais rico dizer que a terra não tem "nem" luz própria de que anunciar apenas que a terra não tem luz própria. Na primeira oração, somos impulsionados a dizer de outras faltas sem negar a afirmativa científica. Não há, pois, educação permanente sem a formação de leitores.


É urgente reconhecer a existência de outros desenvolvimentos além dos tecnológicos, nos últimos tempos. As formulações sobre o homem, seu destino, seu desejo, suas frustrações e fraquezas evoluíram paralelamente. É perigoso muitas vezes, considerar eficaz um processo educativo
quando apenas comprometido com o sucesso financeiro. Conheço, Vânia, um número incalculável de indivíduos que se empobrecem ao enriquecer. Perderam a sensibilidade, o respeito, a afetividade, a generosidade, a humildade; ganharam em arrogância, insolência, soberba, autoritarismo. Seria justo chamar educativo o processo que levasse a tal resultado?

Krika

_________O_________

1 comentários:

disse...

Olá Quasímodo!
Linda carta! Belas e profundas palavras, cheias de consciência e real preocupação com a verdadeira arte de "escrever e viver". Muitas vezes os professores tentam "ensinar" algo pronto como se os alunos assim aprendessem melhor...ilusão! Ler e escrever mecanicamente, decifrando e reproduzindo códigos do alfabeto é importante, mas, a mínima parte que nos introduz na literatura: ah!essa sim precisa da liberdade plena que sabiamente o autor cita. Depois que entendemos e absorvemos essa liberdade literária, vivemos muito melhor.
Aproveito para dizer que tem selinho pra ti, ok? Bjins e até!

 
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