Voltei à Lagoa Vermelha, cidade de meu nascimento. Entre a estação rodoviária e a casa de parentes, que me aguardavam sem saberem o dia e a hora em que eu chegaria, segui a pé. Carregava, na mão direita, uma pequena maleta de nylon azul que estampava a marca de um fabricante de material esportivo. Dentro dela algumas peças de roupas cuidadosamente dobradas, uma sacola plástica de supermercado com as coisas do banheiro que reuni às pressas: pasta de dentes, escova, sabonete e a velha Havaiana de tiras azuis enrolada num jornal. Poucas coisas, o suficiente, no meu entender, para dois dias de permanência.
A mão esquerda segurava, pelo colarinho e sobre o ombro, a jaqueta rota que vestira pela manhã, seis horas antes, ao sair de casa, pois que estava frio, trezentos quilômetros ao norte.
Ao desembarcar do ônibus, minutos antes na plataforma, um misto de nostálgica euforia e a sensação de anonimato, já esperado, mas não desejado, me invadiu.
A voz feminina, nasalizada e monótona de 30 anos atrás se sobrepôs ao burburinho geral: “-Atenção senhores passageiros! Partirá neste horário o ônibus da Empresa Manfredi com destino à Lajeado dos Ivos, Capão do Cedro, Capão Alto e Santa Luzia. Queiram ocupar os seus lugares e boa viagem!...” Seria a dona dessa voz, a mesma pessoa ainda?
Gentes corriam afoitas ao portão de embarque determinado. Homens de bombacha azul-marinho, botas com o cano quase aos joelhos, lenços no pescoço, pretos uns, a demonstrar o luto pela perda recente de um parente. Alguns deles tinham o rosto vermelho, suado, e exalavam cheiro de cerveja quente. Mulheres arrastavam sacolas e conduziam crianças pela mão que sobrara livre.
A Avenida Benjamin Constant estava diferente. Uma camada de asfalto cobria as pedras irregulares de outrora. O Novo Hotel, à esquerda, do outro lado da rua, ainda exibia seu letreiro luminoso, embora velho. A loja “Disco de Ouro”, onde comprei meus primeiros LP´s dera lugar a um pequeno bazar a abrigar umas três cabines telefônicas ao fundo das prateleiras de cadernos, presentes baratos e ursinhos de pelúcia.
A Escola Normal Rainha da Paz ainda era a mesma em que, há quase meio século, aprendi as primeiras letras, minha mão sendo conduzida, com paciência, pela mão delicada e macia de uma normalista estagiária.
Deu-me uma súbita saudade da escola. De todas as escolas. Decidi voltar, afinal, embora aguardado, não tinha nenhum motivo para pressa. Voltando sobre meus passos dobrei à esquerda e desemboquei na Avenida Afonso Pena com seu largo canteiro central arborizado em toda a sua extensão. Passei por vários lugares da infância, sem prestar muita atenção. Meu objetivo era o Colégio Duque de Caxias, onde cursei o Ginasial e o Científico.
Não há mais o colégio. O prédio antigo e desbotado deu lugar à uma extensão do Hospital São Paulo. O pátio de cimento onde tantas vezes ralei o joelho e os cotovelos jogando futebol parece agora ter se convertido em estacionamento.
Inevitável não lembrar os colegas, as namoradas imaginárias e os professores, especialmente de um. De pequena estatura, passos rápidos, já avançado nos anos, tinha a árdua missão de fazer-nos entender a língua portuguesa e suas regras e tomarmos gosto pela literatura da mãe pátria latina.
Professor Fidélis. Frei Fidélis. Fidélis Dalcin Barbosa.
Tive o prazer de conhecê-lo quando ele há pouco havia voltado de uma estadia em Portugal. Se foram suas lembranças recentes das terras lusitanas que o tornava tão eloqüente e apaixonadas as suas aulas, nunca soube. Sou, no entanto, testemunha da sua empolgação ao ministrá-las.
Com o passar do tempo nós, alunos, aprendemos um recurso ardiloso para obtermos boas notas quando nossos conhecimentos gramaticais se escasseavam e se perdiam entre as concordâncias verbais e adverbiais. Bastava recitar alguns trechos de Camões, de Eça de Queirós ou de Fernando Pessoa, que os conceitos melhoravam substancialmente. Recitei muito “Tabacaria”.
Nessa época o professor Fidélis já havia publicado diversos livros. O primeiro que li foi “O Prisioneiro da Montanha”, a história revivida de um Robinson Crusoé em terras gaúchas. Mais tarde li outros, dentre os quais “Uma Estrela no Céu”, livro que descortinou ao público um fenômeno de fé que existe num crescendo em Passo Fundo à respeito de uma moça, Maria Elisabeth de Oliveira, tragicamente morta atropelada por um veículo que fazia o transporte de passageiros na cidade, no ano de 1965, às vésperas de comemorar quinze anos. O túmulo dessa moça, localizado no cemitério da Vila Vera Cruz, é hoje, local de romaria de devotos em agradecimentos à graças alcançadas e a novos pedidos, principalmente no dia de Finados. Muitas pessoas têm essa obra em sua cabeceira, como livro de orações.
Poucas vezes vimos o professor Fidélis de mau humor. Se bem me lembro, a única vez que o vi triste, foi quando lhe roubaram uma velha máquina de escrever, cujas teclas tinham um posicionamento diferente do habitual. Um colega emprestou-lhe uma Remigton, moderníssima para a época. Não aplacou sua tristeza, pois que nela não encontrava as letras. Anos mais tarde, em um depósito de leilão, encontrei uma máquina similar à que lhe roubaram. Comprei quase que instintivamente e ainda a guardo.
Na casa dos anfitriões, eu soube que o professor Fidélis Dalcin Barbosa falecera anos antes.
Não poderia deixar de reverenciá-lo ao iniciar este projeto, pois se houver algo de correto nos escritos da Letras da Torre, muito a ele deve-se creditar.
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Algumas obras do professor Fidélis Dalcin Barbosa (sem cronologia):
- Clelia Merloni – Apóstola do Amor
- O Prisioneiro da Montanha
- Semblante de Pioneiros
- Vacaria dos Pinhais
- História do Rio Grande do Sul
- 80 Anos de Amor ao Trabalho
- A Coloninha
- A Diocese de Vacaria
- A Missão de Uma Jovem
- A Rebelião das Águas
- Águas de Piratuba
- Antônio Prado e Sua História
- Campo dos Bugres
- Eu Fui Um Marginal
- Fanáticos de Jacobina
- Daniel Bertelli – Hoteleiro
- Luis Bugre
- Nova História de Lagoa Vermelha
- O Anjo de Cinzano
- O Campo dos Bugres
- O Primeiro beijo
- O Rapaz que não fumava
- Prisioneiros de Vila Velha
- Prisioneiros do abismo
- Prisioneiros do campo
- Prisioneiros dos bugres
- Rita Amada de Jesus
- São Paulo
- São Virgílio da Segunda Légua
- Tesouro escondido no campo
- Uma Estrela no Céu
- Memorial de Olga
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(Voltarei ao tema no devido tempo)
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O título deste artigo, por absoluta falta de criatividade do Anfitrião da Torre, foi baseado no filme “To Sir, With Love” dirigido por James Clavell, com Sidney Poitier no papel principal.
Imagem: Deviant Art
13 comentários:
____comovente, tocante e de um capricho notadamente bordado. simples como revisitar o passado, andar por nossas ruas, tão retintas de histórias, como num trecho de um filme tão igual. que carregamos na memória.
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belo momento esse que, fui companhia de caminhada, sim, por que caminhei com você, por esse lindo texto. respirei seu ar e bebi do que seus olhos viam.
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professor Fidélis, certamente, de onde está, respirou aliviado, dando aquele suspiro de quando a gente vê nossa cria, fazendo a coisa certa.
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e o título foi inspiração, eu diria, perfeito.
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um beijo meu camarada, tão querido.
que linda homenagem, mocinho!
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palavras que certamente nos levam a caminhar com você e, ao mesmo tempo, nos levam a empreender uma viagem paralela, buscando explorar lugares de outras épocas e encontrar sentimentos semelhantes... o reencontro, a constatação da mudança e aquela sensação de nó na garganta pela certeza de saber que tudo faz parte de um passado que deixou marcas...
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bom saber que há por aí professores fidélis... bom ter por aqui discípulos desses professores, que nos contemplam com letrinhas tão doces...
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concordo com a fá, o título está perfeito.
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parabéns e um beijo enorme ao anfitrião
nossa..com tantas "feras" por aqui, fico um pouco constrangida em deixar letrinhas...
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mas, posso dizer, que sua descrição foi perfeita porque "viajei" até sua cidade, "vivi" suas experiências e "vi" através de seus olhos, a beleza, o sentimento, que conseguiu me transpor.
O título? Perfeito como tudo.
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A você, um nobre mestre prá mim, te deixo meu bj*, com carinho.
Meu querido amigo
Quanta riqueza.
Falcões se postam em torres e de lá observam , aprendem, e voam.
Lindo vôo pati .
Carinho!
Sabes que não tenho o dom da escrita...
Que muito do que falo ou escrevo vem do momento...não analiso,não reviso...só deixo rolar...rs
Mas,gosto de dar pitaco...pq mesmo sem ter o dom,tenho bom gosto...isto eu tenho!..rs
Tenho faro pra boa escrita...
Viajei contigo!
Sentiste a sacola pesada?
Era eu...rs..encolhida entre as sandálias e o "prestobarba"...rs
Que belo texto!!
Fidélis não ensinou as letras,tão somente...ensinou o respeito,a admiração,o reconhecimento...fez de ti esta pessoa maravilhosa que és hoje!
Ele tem participação nisto...
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Beijos...muitos!
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Alguns professores realmente marcam a nossa caminhada, não é? Aqueles em que vemos o amor em ensinar, com certeza deixam um pouco desse amor dentro de nós. Tb amo a lingua portuguesa, apesar de entender pouco dela, pelo tanto que existe a aprender.
Lindo texto, fiquei lembrando de quando eu morava longe, estudante, e voltava para visitar meus pais. Cada volta era uma mudança, cada dia as coisas um pouco diferentes, ainda não sei dizer se a sensação é boa ou ruim. Algumas coisas a gente gostaria que ficassem para sempre como eram...
Mas é a vida. Infelizmente (ou felizmente) ela não pára, nunca!
Adorei, muito bonito e bem escrito o texto! Bem que a Lu me disse q vc era bom com as palavras =]
Beijos
Encantada...é, acho sim, que é a palavra exata para descrever o que senti ao ler teu texto.Que bom, amigo, que vieste ao nosso mundo blogueiro, que no fundo é apenas um local, onde jogamos a alma ao vento...e quanto aos que reclamavam a tua ausência, dou-lhes toda razão.Muito egísmo seu não nos dar o prazer de tão gostosa leitura...
Um bjo na bochecha, e fanzona de carterinha...aqui ó, na primeira fila da arquibancada, batendo palmas...
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vim espiar o que andava acontecendo pela torre.
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beijo
Corcundinha.. vim pra fazer o teste..rsrs
Voltarei mais vezes..
agora vou ler a postagem..
Beijossss
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então... vim novamente.
ainda forte o cheiro de tinta fresca.
quando chega a mobília nova?
ansiosa p/ ver.
beijos
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Meu carinho a todos que passaram pela Torre.
Professor Fidélis foi, verdadeiramente uma pessoa que marcou uma geração.
Estou a recolher informações para, quem sabe, publicar algo mais completo a respeito dele, no futuro.
Os fragmentos que já reuni são insuficientes para dar a linearidade necessária à história da sua vida.
À Fá, Uns, Livy, Lu, Gira, Milly, Anne, Filó, Theo, meu abraço afetuoso ao virar a página.
Que lindas palavras ao Professor Fidélis, tenho certeza que onde ele estiver, te agradecerá e te abewnçoará, pela presença marcante que teve em tua vida.Estou me emocionando demais com isso aqui.Isso não é bom pro coração da véinha.
Te conheço ha tanto tempo e não imaginei que tinhas essa habilidade tão rara de contar causos.
Beijos
Estou amandoooooo!
Betânia
Terminei de ler "O prisioneiro do abismo" ontem e confesso que gostei muito da leitura. Enquanto lia me sentia viajando pela descsrição das paisagens, visto qeu são todos lugares próximos de onde moro. Eu faria algumas ressalvas sobre algumas informações, mas isso é errado, é um livro de ficção, simples e direto, como deve ser. Devido ao meu modo de pensar, não gostei muito da parte religiosa, mas mesmo assim adorei o livro!
Fidelis Barbosa está de parabéns!!
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