sábado, 19 de junho de 2010

Encruzilhada Natalino

Na última vez em que fui ao Rio Grande do Sul, para visita à parentes, no retorno e com tempo, viemos pela RS 324, que liga Passo Fundo à Ronda Alta. A estrada, hoje asfaltada, a não ser pelo traçado que pouco mudou, não lembra em nada a que existia no início da década de 80, apesar de alguns descuidos de conservação.

Nessa estrada, de cerca de 80 km, há uma bifurcação que leva à BR 386, permitindo assim acesso às cidades de Sarandi, Carazinho, Coqueiro do Sul...

A essa bifurcação, “encruzilhada” para os gaúchos, convencionou-se chamar de “Encruzilhada Natalino”, por conta de um morador e comerciante de nome Natalino, estabelecido com sua atividade rural-pastoril-comercial nesse local.

Pois foi exatamente nesse lugar, no lado oposto da rodovia, em relação à casa de comércio de Natalino, que se iniciou o que viria a transformar-se no símbolo da resistência e organização agrária que ainda hoje persiste. Encruzilhada Natalino foi um salto para a unificação ideológica de diversos grupos e tendências que lutavam pela Reforma Agrária.

Todo o processo de luta naquela região teve seu estopim na conhecida Encruzilhada Natalino, mas não começou ali. Já em 1962, época do então governador Leonel Brizola, parte da conhecida Fazenda Sarandi foi desapropriada para o assentamento de algumas famílias da região, organizadas pelo MASTER – Movimento dos Agricultores Sem Terras – no acampamento Cascavel. Parte destas terras foi destinada ao assentamento de algumas famílias, e o restante do complexo foi distribuído em médias e grandes propriedades.

Havia ainda um conflito permanente nas áreas indígenas da região. Agricultores que foram expulsos dos territórios indígenas começaram um movimento em busca de terra e realizaram as ocupações das fazendas Macali e Brilhante. “Os governos estadual e federal abriam projetos de colonização no norte do país. Mas nesse período tinha a CPT - Comissão Pastoral da Terra - e outras organizações apoiando o povo e nem todos foram pro Norte. Em torno de umas 500 famílias foram se organizando e em setembro de 79 um grupo ocupou a fazenda Macali, e outro grupo ocupou a fazenda Brilhante”, lembra Salete Campigotto, hoje assentada em Sarandi.

E foram se juntando pessoas, de vários municípios da região. Muita gente que trabalhava como agregados, outros de famílias pobres, que não tinham como acomodar todo mundo em casa”, lembra Salete. “Ficamos ali e o acampamento começou a inchar, gerar mais pressão. O curioso é que a Encruzilhada ocorreu na época da ditadura militar”, complementa Antoninho Campigotto.

Nas cidades havia a contestação ao regime através de greves operárias e agitações estudantis.

O então presidente, o militar João Batista Figueiredo, enviou para a região um de seus quadros de maior confiança, para desmantelar o acampamento. O coronel Curió era conhecido – e temido – por seu histórico de repressão e violência contra a organização popular. Havia sido responsável pela desmobilização de Serra Pelada e pela dissolução da Guerrilha do Araguaia. Em 1981, armou acampamento com todo seu aparato na região.

Nesse contexto, as organizações e movimentos urbanos, viam na resistência dos acampados mais um flanco de luta contra a ditadura militar.

A solidariedade fortaleceu a resistência. Além do apoio de assentados da região, padres, pastores, sindicatos e trabalhadores que apoiavam a Reforma Agrária, se uniam cada qual a seu modo, em apoio aos colonos.

Quando estive lá, no início do ano de 1982, a estrada era poeirenta. Eu integrava uma comitiva de pessoas que representavam algumas dessas organizações urbanas. O objetivo era quebrar o cerco do Coronel Curió aos assentados e estabelecer uma ponte com o que cada uma de nossas organizações poderia fazer: arrecadar em suas instâncias; roupas, alimentos, remédios. Mas principalmente demonstrar nosso apoio político, a solidariedade efetiva e afetiva.

Fomos em um comboio de três carros, num total de 8 pessoas, cada um de nós com a responsabilidade de representar centenas de outros. A tensão era grande entre nós. Temíamos a truculência histórica do Curió.

Mas para nossa surpresa e desconfiança, não fomos parados por nenhuma barreira militar, que, simplesmente nos olharam passar.

No Natalino, centenas de barracas de lona se estendiam ao longo da estrada. Crianças corriam e brincavam nos barrancos. Aqui e ali, um grupo discutia acalorado. Mulheres estendiam roupas na cerca de arame farpado. Dos barracos de lona preta, enfileirados ao longo da estrada, subiam filetes isolados de fumaça azulada, que se juntavam no céu, abaixo das poucas nuvens.

Chegamos à Encruzilhada, propriamente dita, aonde uma cruz de madeira tosca, com panos amarrados em sua transversal - viemos saber depois - representavam as crianças que morreram no acampamento. Ali conversamos com algumas lideranças e expusemos as nossas pretensões. Efusivamente nos receberam. E denunciavam. “Estão secando o açude onde a gente lava a roupa. Estão levando os cavalos para beber e sujar a fonte onde a gente bebe água. Os caminhões do exército passam correndo aqui, levantando poeira e correndo com as crianças. Sujando a roupa que lavamos. E de noite, soltam foguetes. As crianças se assustam e não dormem.”

Dali, fomos à cidade de Ronda Alta, conversar com o então presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Saul Barbosa, que por medida de precaução, preferiu nos receber em sua casa, já que a sede do Sindicato estava ostensivamente vigiada.

Dentre tantas coisas que ele falou uma frase nos fez meditar profundamente: “Curió não quer o confronto direto, ele sabe que o regime está já bastante desgastado, e qualquer morte que ocorrer aqui, será transformada em bandeira para o resto do país. Ele está agindo de forma a cooptar as famílias para um projeto no Mato Grosso. Esvaziar o movimento. Dividir os colonos”.

Saul Barbosa, anos depois foi eleito prefeito de Ronda Alta.

De fato, a profecia do Saul se concretizou. Curió conseguiu arrebanhar algumas centenas de famílias do acampamento e alojá-las em Lucas do Rio Verde em Mato Grosso. A maioria, porém, voltou de lá, por não estarem preparadas para a monocultura, principalmente de soja, que combatiam aqui, além de terra e solo diferente do que estavam acostumados a cultivar. Das centenas de famílias que Curió conseguiu arrebanhar, restaram em Lucas do Rio Verde, pouco mais de uma dezena, que ampliaram suas propriedades comprando as terras dos que não se adequaram ao ambiente, e, espertamente usaram incentivos e financiamentos federais, bancados por toda a sociedade brasileira.

Voltando à Encruzilhada Natalino, apesar das defecções caudas por Curió, a maioria das famílias resistiu. Em 2002 as forças de Curió se retiraram. Muito contribui para o fracasso da repressão um fato, no mínimo, curioso: Um acampado, tentando sintonizar uma emissora de rádio argentina, em ondas curtas, casualmente entrou na freqüência do rádio do Coronel Curió, quando enviava os seus relatos para o antigo SNI. A partir daí, todos os movimentos das tropas eram sabidos por aqueles colonos, supostamente ignorantes.

Hoje está marcado em uma placa, bem ali na Encruzilhada Natalino: “derrota do Curió e vitória da luta pela terra”.

A Fazenda Annoni foi desapropriada.

“Antes isso aqui tinha 800 e poucas cabeças de gado nos 9,2 mil hectares, e o tradicional capim Anonni, que hoje é uma praga pra nós. Aqui temos a prova que nossa prioridade é produzir, em cima dessa área que era improdutiva, e alimentar as pessoas”, afirma Jorge José dos Santos, que também participou da ocupação.

Hoje, na região da antiga fazenda Anonni são 7 comunidades. Todas elas possuem seu ginásio de esporte. Todas as crianças freqüentam uma das três escolas que existe por ali. Uma é estadual e vai até a 8ª série, e duas municipais. O assentamento abriga ainda uma escola técnica, o Instituto Educar, que forma técnicos em agroecologia.

Alguns anos depois, em um congresso que reuniu representantes das organizações que defendiam a Reforma Agrária, em uma cidade do interior do Paraná, foi fundado o MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, cuja origem está fincada nas hoje pedras, placas e monumentos solitários num descampado da Encruzilhada Natalino.
A luta ainda continua!
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Fotos: Marta Kurigatah
Texto: Memórias
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2 comentários:

Anônimo disse...

Que viagem maravilhosa me proporcionou este texto, parabéns pela aula de história professor, fatos estes que somente vivenciados podem ser ditos com tanta clareza.
Abraço a todos.

cassiano

Quasímodo disse...

Cassiano;

Me alegra que gostastes. Essa é a história que não aparece nos livros.

Quanto ao termo "professor", quem me dera ser apenas um discípulo.

Abraço.

 
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