Neste domingo fiz o que, imagino, todos fazem algumas vezes ao longo da vida: revirei velhas caixas de papelão.
O objetivo era jogar fora coisas inservíveis.
Mas como também imagino acontecer com todos que reviram baús antigos, quase todas as coisas voltam para seu lugar, com menos traças e menos pó.
Encontrei este texto amarelado, com data de 25 de Dezembro de 1979, e que, por alguma razão desconhecida me acompanhou nas muitas andanças que fiz, como me acompanham as lembranças e as saudades.
Tiro da escuridão do baú, para a penumbra da Torre.
_________________________
PARA ALÉM DO FIM DO BECO
As luzes da cidade ainda estavam apagadas. Na praça os cordões de lâmpadas ornamentais teciam reflexos cruzados refletindo a fraca luminosidade que vinha do oeste. Alguns conjuntos enfileirados se estendiam paralelos à linha da rua, outros cortavam-na transversalmente.
Pessoas apressadas esbarravam nele enquanto praguejavam na tentativa de manter os pacotes sobrepostos equilibrados.
Na calçada o movimento era grande.
Ele caminhava lentamente, arrastando os pés, indiferente, em completo desacordo com o corre-corre geral. Era um corpo estranho. Não prestava atenção a quem o olhava curioso e desconfiado, nem a quem apenas se desviava indiferente.
Olhou, sem interesse a moça vestida de Papai Noel que gesticulava na porta da loja de brinquedos, na tentativa de atrair os traseuntes ávidos de gastos.
Aquele mundo não o pertencia, apenas vivia nele.
Era um fim de tarde, semi-noite, diferente da movimentação de outras tardes.
Era véspera de Natal, ele o sabia. Comentara com Júlio, enquanto requentava a panela de comida ao meio-dia, lá na construção, que ao fim da jornada, pediria um vale para o Seu Armando, e compraria uma bola de gomos brancos e azuis que o Pedrinho vira na vitrine da loja, logo ali, na praça.
O vale não saiu, e a bola, via agora, não estava mais no seu lugar. Talvez tenha sido levada por alguém cujo vale saíra, pensou.
Continuou a caminhar em passos lentos, e ao passar pela porta da farmácia, lembrou-se do Melagrião para a tosse do Juliano, que estava nas últimas colheradas no fundo do vidro.
Aos poucos, a noite cobria a cidade à sua volta. As pessoas continuavam a formigar em todas as direções, carregando pacotes.
As luzes agora piscavam azuis, verdes, vermelhas, coloridas. A estrela luminosa no alto da árvore, acendia e apagava em intervalos regulares.
Lembrou-se que era tarde. Maria, por certo, já o esperava no barraco com a bacia de água morna preparada.
Amanhã será feriado. Aproveitaria o dia de folga para arrumar a coberta do barraco que o Chico Preto quebrara ao fugir da polícia durante a última batida realizada nos aterros. Chico Preto tinha coragem, esboçou um sorriso triste, enquanto lembrava da noite em que Chico pulara do barranco da estrada de ferro, para os barracos lá em baixo, e dali para o chão, sumindo na escuridão da noite. Os brigadianos ficaram lá em cima, gesticulando espantados. Agora tinha uma goteira sobre a cama do Pedrinho.
A noite já o envolvia totalmente. Não havia mais luzes coloridas ao seu redor. Ouvia-se apenas o som ôco de seu caminhar cansado, interrompido, de tempos em tempos, pelo badalar dos sinos da Matriz, bem longe, atrás.
Seus passos foram sumindo na noite, para além do fim do beco.
Amanhã será feriado. Será dia de Natal.
25/12/1979
_________________________
1 comentários:
_Alguns Natais sao assim, vivenciados na observaçao, nos sonhos. A realidade é cruel. _Alguns Natais sao reais, enquanto se vive de sonhos.
_Há Natais e natais.
Postar um comentário