Não adianta, a vida pode cruelmente passar, mas jamais apaga nossas lembranças mais ternas. Escondidas nos escaninhos do tempo e da memória. Nas remembranças. A alegria e a dor caminham juntas, são gêmeas como as orelhas do meu tostado que morreu em um janeiro numa volta de mato, à beira da restinga, perto das amoreiras pretas. Ele gostava tanto de passar as tardes debaixo daquelas amoreiras, coitado, reboleando a cola, espantando as mutucas. Então optou por morrer ali, debaixo da sombra doce e amiga, com os olhos fixos nas coxilhas onduladas, sob o céu azul da sagrada terra castilhense...
Quando lembro da infância recordo dos serões de minhas tias fazendo doces na cozinha. Eram tachos de peradas, marmeladas, figadas, goiabadas... Os aromas ganhavam a casa, enchiam nossas narinas com o cheiro das frutas cozidas, esmagadas e depois virando pasta. A seguir, eram colocadas naqueles apetitosos quadros de madeira, dentro de vidros, doces para o ano inteiro. A vida parecia mesmo, naquela época, uma geléia de morangos maduros. Enquanto aquela labuta toda enchia a casa, eu, meu irmão, uns primos e alguns amigos, ficávamos brincando nas noites de verão. Corríamos caçando pirilampos para depois transformá-los em lanternas dentro de garrafas vazias. Naquela farra, a cachorrada, ladrando, nos seguia feliz.
A criançada, às vezes, ajudava na lida. Um dos trabalhos era mexer os caldos com as grandes colheres de pau, ou então carregar lenha seca para os fogões de barro, com as chapas de aço. Uma vez encostei a barriga numa chapa vermelha e o vergão ficou imenso, uma queimadura terrível. Só não piorou porque urinei na mão e passei no local, como meu pai havia ensinado. Com o ácido úrico nem bolha levantava.
Passaram-se uns anos e a minha vida se tornou amarga. As belezas e doçuras deram lugar a um tempo feio, sem brincadeiras infantis, sem minhas tias, sem meu irmão, sem meus amigos e, principalmente, sem a minha mãe, sempre tão feliz, fazendo doces. Nunca mais vi as caixetas de doces, os vidros de compotas nas estantes. Chegou a um termo terrível e agora, se a existência não está assim tão amarguenta, a minha boca anda seca, com gosto de água salobra. Hoje, quando chega o verão, arrasto minhas alpargatas por esse apartamento, um caixão de concreto, e lembro das antigas noites de guri. Sonho em morrer como o meu tostado, debaixo das amoreiras, só para sentir, no último suspiro, todos os doces que a vida me levou um a um, lentamente da palma da minha mão.
Paulo Mendes - Publicado no Jornal Correio do Povo -Na coluna Campereada -Edição de 16 a 23 de Maio de 2010
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Esta crônica chegou-me às mãos, recortada do jornal Correio do Povo. O amigo Claudino Pastre, com um pouco de dificuldade visual, pediu-me que a ampliasse para que ele pudesse ler. Me identifiquei tanto com ela, que também a publico aqui.
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3 comentários:
Causo dos bons!
Ótima escolha amigo.
Beijo!
Obrigado, Lu.
Acho que todos nós, que já somos um tanto rodados, temos essas remembranças.
Beijo.
eu nem sou assim tão rodada, mas tenho também... rss
beijos, querido!
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