José atravessou o rio por sobre o tronco caído da guajuvira sem dificuldades. Estava acostumado a passar por ali quase todos os dias, carregando a bicicleta. Nas épocas de estio, quando as águas minguavam era mais fácil cruzar pelo lajeado, um pouco mais abaixo, por onde as carretas e as mulas com os cargueiros de moagem passavam. Mas, apesar da chuva ter parado há uns três dias, as águas ainda estavam ligeiras e poderiam molhar os pneus, que depois, com o pó da estrada...
O pai tinha razão. Aliás, tinha sempre razão e por isso vivia bem de negócios, diferente dos vizinhos roceiros que só se prestavam para plantar e colher. Amâncio, o pai, não. Não plantava nem colhia no pedaço de terra que tinha junto ao rio. Quando as crianças eram ainda pequenas, obrigava-se a fincar um palanque, estirar um fio de arame, pregar uma ripa no cercado dos bichos miúdos, mas agora, com os filhos já taludos, eles que arrumassem as cercas e limpassem os chiqueiros. – Tenho que me preocupar com os negócios, dizia.
Vivia de escâmbio, como se falava nos arredores. Trocava uma galinha por um pato, um pato por um ganso, o ganso por um porco, o porco por uma novilha que logo virava vaca e dava cria a um bezerro que trocava por uma carga de milho para dar de comer a bicharada toda que sempre aumentava.
Tinha razão o pai – e era nisso que pensava José – quando ensinava que a aparência da mercadoria era tudo. – Essa colonada come cos zóio. Se pintar um gambá de vermeio eles compram por potrilho.
Então era melhor não arriscar a molhar os pneus da bicicleta que grudaria pó e sujaria os pára-lamas, o varão, os aros, enfim, desvalorizaria a mercadoria.
O Tadeu já tinha feito uma proposta no domingo passado, no jogo de bola. Dava duas galinhas e um frangote no negócio. Ele, como convém a um negociante e ensinara o pai, achou pouco. – Esta é uma Odomo, de quadro reforçado! Vale, pelo menos, aquele terneirote de sobre-ano que dia destes vi pastando no potreiro, perto dos cochos.
Não, o boizinho era muita coisa. O negócio não saiu naquele dia. Ficaram de pensar mais e se propostearem novamente no sábado, quando tinha o puxirão no Ataliba.
De noite, em casa, contou para o pai.
- Não froxe. Endureça no terneiro. Se vê que não dá negócio, peça um porco, um leitãozote. Mas só as galinhas e o frango não. Em último caso, peça um pato de sobre-lombo. E dê um trato na bicicleta. Lave, escove as rodas, passe graxa na corrente e nas rosetas...
Bem mandado, melhor feito. Tirando uns descascados na pintura do quadro, a mola do bagageiro que tinha quebrado, a falta de dois raios e um amassadinho no pára-lama da frente, a bichinha parecia nova.
A Zizinha – batizada de Marilza – já tinha ido à frente junto com os dois outros irmãos. Ela não ia para a roça com os homens. Ficaria na casa ajudando a mulher do Ataliba nas lidas do almoço. Mas se prestou a levar a enxada dele, José, se bem que o seu interesse e dos irmãos não era bem o de render no eito. Mas o pai mandou... E nunca se sabe quando vamos precisar de um vizinho, um negócio lá prá diante. Não custa...
Na roça não teve oportunidade de falar com o Tadeu. Ele estava na outra ponta do eito, onde o mato era maior. – “Eu é que não sou burro de ir prá lá. Tá um capoeirão danado, e com esse sol...”
No meio da manhã e já com a roça bem adiantada, o Ataliba propôs um descanso, tomar um trago da branquinha que o Arcelino tinha trazido, enrolar o palheiro...
- Tadeu, vancê que é guri novo, bem podia dá uma carreira lá na sanga e pegar uma água fresca. Os porongos tão ali debaixo daquele açoita-cavalo. Encha os dois, faz o favor.
Quando foi buscar a água, viu a bicicleta na sombra, perto do mato. Parecia mais bonita, mais vistosa. Chegou perto, examinou, apalpou... Mas o boizinho era muita coisa...
Quando afundou os porongos para enchê-los avistou a Zizinha, com o vestido levantado acima dos joelhos, sentada no barranco do outro lado, com os pés na água.
- Vixe, Zizinha. Que me assusta! Que faz ai, que nem assombração, cruiz credo!...
- Vim lavá a gamela prá mode iscoiê o arrois. Mas vancê sujo a aua..
- Lava aqui mais prá riba. Prá cá ta limpa.
Encostou os porongos, saltou a sanga e ajudou-a a levantar-se.
- Minina, Cê ta cós pé moiado. Mió inxugá. Vá que gripa.
Não vendo nada ao redor que se prestasse a essa tarefa, tirou a camisa e começou a secar com ela os pés da Zizinha.
- Não carecia. O sol logo secava.
- Carecia sim. É por gosto.
Ela, de súbito fechou as pernas prendendo a mão dele entre os joelhos.
- Faiz cósca. Dá arrepio.
- Voismecê não gosta de cosquinha?
- Inté que gosto. Mas sô moça direita. Pode vir gente...
- Vem não. Tão tudo lá no morro...
- Sô moça direita, já disse. E cê ta levantano meu vistidinho... Mió pará. A mãe ensinô que não é prá ficá levantano o vistido a toa...
Entonces... Só nóis cumbiná prá não sê a toa...
Quando ele voltou para a roça, alguns roceiros já estavam trabalhando, outros, como o Arcelino bicavam os últimos goles da pinga.
- Alas pucha, tchê, demorô. Toma um gole? Tá no fim...
- Não, agradecido. O pai não deixa...
- Pois devia dexá. Faz bem pros miolos, com este sol...
O José do Amâncio se achegou, e depois de beber de um dos porongos perguntou:
- E então? Batemos o brique?
- Puzóia... Tive matutano...
- Eu também tive. Falei com o pai. Se achar que é muito o boizinho, podemos negociar com um porco. Porco grande e gordo, mais as galinhas...
... – e arresolvi fechá o negócio.
- Por um porco? Mas tem que ser dos grandes...
- Não. Pelo terneiro.
- Pelo terneiro? O de sobre-ano? Aquele?...
- Aquele. Fica bem pago.
- Palavra?... Negócio fechado?
- Palavra!... Negócio fechado! Despois da bóia passa lá em casa e pega o terneiro. Já dexa a bicicleta.
No dia seguinte, domingo, logo cedo o Tadeu estava treinando o equilíbrio na bicicleta. Na ladeira até que estava indo bem. Morro acima é que a coisa não ia. Não tinha jeito de aprender a acalcar os pedais um de cada vez. Não se concentrava, pensava na Zizinha. Mas com tempo e treino...
Do outro lado do rio teve churrasco. Amâncio resolveu aproveitar o bom negócio feito pelo filho e trocou com ele o boi por uma leitoa prenhe. Carnearam o boizinho.
Combinaram: É dia de o padre Humberto vir na capela da comunidade rezar a missa. Ele não vive reclamando a cada dois meis que não vamo na missa? Que semo tudo pecador, que logramo os colonos nos negócios? Pois então. Vanceis mulher vão na missa. Eu e os guri ficamo carneando. Vão e convidem o padre.
Quando as mulheres voltaram com o padre, as costelas já estavam no fogo, no espeto feito com varas de guamirim. O restante da carne estava estendido em mantas no varal das roupas. Três fogos acesos por baixo, com gravetos verdes misturados com a lenha seca, faziam fumaça para espantar as varejeiras.
Na mesa, armada na sombra, perto do rio, com as laterais retiradas da carreta e outras taboas improvisadas, se ajuntaram todos. Padre Humberto ficou numa ponta, Amâncio na outra. Nos lados assentaram-se a filharada toda e mais o Capistrano um rapaz da vizinhança, que quando soube da carneação se ofereceu para ajudar... e foi ficando.
Orgulhoso, José recebia os elogios pelo ótimo negócio.
- Viu agora, padre, que também semo cristão? Fazemos negócios certos com a colonada. A maioria nem vai na missa. E negociam porque querem. Não obrigamos ninguém...
- Eu não criticava vocês, meus filhos. Só manifestava a minha preocupação com vossas ausências. Deus não proíbe a prosperidade desde que sem ostentação e com a devida retribuição à obra do Senhor e a seus enviados...
- Como hoje, padre. Meu filho José fez um bom negócio. Mandei as mulher na missa e convidei o senhor pro almoço...
Um bom negócio. Só falavam nisso. Zizinha baixou os olhos brejeiros e limpou a boca no canto da toalha, como que para disfarçar os pensamentos:
- Que o José, os mano, o pai e a mãe não saibam. Menos ainda saiba o padre Humberto, mas o negócio bom fui eu quem fiz...
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