A verde côma das arvores, mergulhada na tinta preta da noite, particularmente sob aquelle altaneiro tronco de peróba, onde acampáramos, ainda que o albor da aurora não tardasse muito, lembrava a monstruosa copa de gigantesco guarda-sol armado sobre nós. Havia, porém, um rasgo no panno e, pela fresta, a rutilar tremeluzindo, um brilhante solitario apparecia – a estrella-d`alva.
Ainda na rede, mas já acordado, como de costume, áquella hora matinal, eu tirava uma linha do acampamento, por sob a ponta do cobertor erguido um poucochicho.
De um lado, o foguinho – espantalho das onças – conservado acceso noite inteira, crepitava manhoso, agonisante, morre-não-morre, vae-não-vae!
- Tio Noé, bate os tições.
Um clarão opalino, qual o da refração nas forjas, espantou, de subito, o negror das trevas. A claridade, á medida que o lume se animava, ia suplantando, aos poucos, a escuridão em torno.
Parecendo ter sido anesthesiado pela treva, a virgem – Natureza, depois de prolongado lethargo em seu thálamo de verdura, dava os primeiros signaes de volver á vida novamente.
Com os afagos da brisa e os beijos da aurora, seus seios tumidos arfavam de prazer. E Ella, movendo-se, acordava. A escuridão e o somno, symbolos da morte, fugiam espavoridos ao approximar-se o anjo da ressurreição, o mensageiro da vida, encadernado na bemfazeja e doce, na risonha, alegre e esperançosa luz da madrugada.
De formas macabras, esquisitas, qual bando de phantasmas noctivagos, tórtos e direitos, nús e pelludos de musgo, fininhos e grossões, curtos e compridos, altos e baixos, - assim se destacavam das trevas fugidias, surgindo de perfil, de frente e por de trás, os troncos das arvores abatidos pelo clarão do fogo, então reanimado e vivo.
Pouco depois, as três notas agudas, sonoras e compassadas do piar do macuco annunciavam o amanhecer de mais um dia de vida, nesta vida de lutar perenne!... vida amarga de soffrer infindo.!
Notei para logo que uma sombra de desanimo, possivel abatimento, ou um quê de tristeza, anuviava o semblante dos companheiros, de ordinario tão expressivos e joviaes entre si, no viver familiar de cada dia.
Que seria ?! – interroguei-me.
Só a duvida, conclui, a incerteza de alcançar o ponto almejado, tão pertinazmente procurado havia dois longos meses de tremendo labutar por aquelle interminavel espigão, todo cheio de crócas e zigue-sagues sem fim, sobrepondo-lhe, como agravante, a falta de bóia, - seriam capazes de produzir abatimento de animo em homens daquella tempera – o aço batido verga, mas não quebra, - affeitos aos tão rudes quão penosos trabalhos de exploração nas matas.
Pallidos, rostos macilentos, orbitas encovadas devido a série de privações soffridas, cabelleira hirsuta e revolta, cobertos de andrajos, ali estavam elles, emquanto a panella fervia, num circulo, junto ao fogo. Um de pé, outros de cócoras, mas todos em completo silencio, - bussola que norteia os movimentos da alma no encapellado mar da vida – esperavam, pacientemente, sem proferir um queixume, uma palavra, sequer, de revolta, que o dia clareasse de todo, para reencetar a lide quotidiana.
Eram, na verdade, um pugilo de intrepidos heróes dos sertões; porque, se os ha no campo de batalha, empunhando a espada sob o fogo da metralha e o ribombar dos canhões, na defeza dos altos ideaes da Patria e da Humanidade, tambem os ha, posto que obscuros e humildes, por esses sertões adentro, na ingloria conquista do sólo patrio para os grandes da terra. Mas como é essa a ordem commum das coisas da vida, neste ingrato mundo dos mortaes, é contentar-se a gente com o rigor da sorte.
Demais, sendo facto inegavel que todo individuo vem á arena da vida para um fim certo e determinado pelo Creador Supremo, devem, portanto, se considerar mui felizes aquelles que, no desempenho de sua missão terrena, não só colhem alguns frutos dos seus esforços e se nobilitam, mas tambem são uteis á Patria e aos seus concidãos.
Taes foram as reflexões que me vieram ao espirito, identificando-me com o pessoal que compunha minha turma, naquella manhã.
Calado, recebe cada um o seu bocado, pondo-se a devorar, ávidamente, com fome já de dois dias, uma pouca de sôpa de coqueiro – oh! arvore bemdita!... – pintalgada por uns grãozinhos de feijão que sobrenadavam, esparços, aqui e acolá, no meio do caldo, como naufragos perdidos num pélago revolto.
- De tudo que num posso me ageitá é um isto, gente! Só arranjãno úa rede de tarráfa pra pescá estes feijão – disse, em tom de gracejo, um rapazóla.
- E é tomá o gôsto pra certa, proque é o derradêro cozinhadinho que tava no canto do sacco – observou-lhe o cozinheiro.
- É mêmo pras divéra, Chefe? Num me conte o resto!
E acrescentou:
- Logo aqui, neste arto de serra, onde nem macaco se tópa! Desta feita, levo quem trôxe: tãmo no mato sem cachorro!...
- Sem cachorro e sem gato! – emendou o outro dando uma risadinha de troça.
E continuaram a commentar nesse diapasão, a seu modo, o tragicomico da angustiosa situação que, de resto, no momento, não era mesmo lá das muito agradaveis.
Eram chegados os dias das “vaccas magras”!...Tinhamos pela frente este ultimo dilemma: - vencer, não obstante todos os obices, ou morrer.
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Trechos do Livro "Na Trilha do Grillo (... Através das Selvas), de Horácio Nogueira publicado em 1927 pelos Irmãos Ferraz - Editores, e que estou redigitando pacientemente nas horas vagas, cuidando para manter a ortografia original, tarefa nada fácil, visto o meu costume de grafar as palavras automaticamente segundo a ortografia atual.
Alguém poderia perguntar: e porque não o escaneia? Seria tão fácil!... Tentei. Mas como se trata de uma obra rara, antiga e de alto valor sentimental para a pessoa que a emprestou, temi danificá-la no processo.
Horácio Nogueira, pelo pouco que sei, foi um sertanista, desbravador dos sertões brasileiros, além de missionário cristão.
Sabemos da existência de um outro livro dele, cujo título é "O ÍNDIO PENHÁI". Envidamos os maiores esforços para encontrá-lo, infelizmente sem sucesso. Um sinal nos veio de Montevidéu, no Uruguai através de uma Editora de lá. No entanto temos razões para acreditar não ter a autenticidade necessária que buscamos, quanto aos termos e palavras usadas na época.
Apelamos a quem visita a Torre e que, por ventura saiba de alguém que o tenha, que entre em contato conosco. Asseguro que o livro será tão bem cuidado como cuido do "Na Trilha do Grillo" caso alguém se dispuser a emprestar-nos para a sua transcrição. Maiores informações sobre o autor também serão benvindas.
O objetivo é o de resgatar essa obra, antes que definitivamente se perca. E num segundo passo, quem sabe, disponibilizá-la em alguma biblioteca pública e gratuita como o Site "Domínio Público" que pode ser acessado através da coluna ao lado.
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