Trancava as sangas para fazer açudes...
Nada disso ele fazia. Gerenciava!
Convocava a nós, sobrinhos pequenos, sob promessas de não apanhar, para cavoucar banhados, arar a terra, colher pasto na hora certa para alimentar aqueles coelhinhos estúpidos. E aí se algum morresse; e ai de nós se alguma cova de pipoca não vingasse.
Foi um inovador, ele.
Introduziu o esporte bretão, lá naqueles confins de querência, entre vassouras e samambaias das coxilhas, numa época em que nós, bárbaros incultos, só pensavá-mos em caçar passarinho, correr pelos matos e pescar, de vez em quando.
Primeiro ele trouxe uma bola de couro, dura como uma pedra, que dizem, tomou de uns piás da escola.
Nós, os súditos, tinha-mos que mantê-la umedecida com sebo de ovelha.
Era preciso uma técnica especial para chutá-la: arrebitavam-se os dedos e batia com a ponta do pé, pegando mais na sola. Mesmo assim ardia ou destroncava algum dedo.
Tio Lorivan, como dono da bola, do campo, e das bostas de vaca que demarcavam o gol, escalava os times, dentre a gurizada da vizinhança, sempre tendo os mais fortes na sua equipe. De vez em quando ele mudava um jogador de um time para o outro, conforme estivesse o placar.
Foi o primeiro atleta campeiro, pelo que se sabe, a jogar calçado. Não era bem uma chuteira, dessas de marca, que se usa hoje. Ele cortou, à faca, os canos de um par de botas que o tio Severiano tinha deixado a secar ao sol depois de ensebada.
Na ponta, como biqueira, ele pregou um latão dourado, tirado das montarias do vô. Costurou uns meiões de sacos de farinha dos Moinhos Santistas e fez umas caneleiras de ripas de taquara também costuradas, lado a lado, num pedaço de pano em que vinha o açúcar Cristal.
Na primeira apresentação esportiva em que ele se apresentou assim, paramentado, o time dele ganhou fácil. Ele fez vários gols...
Não havia jogador adversário que ousasse enfrentar, numa dividida de bola, aquela fortaleza encouraçada. Alguns jogadores da defesa e até do meio campo, abriam caminho e corriam para o mato ao ouvir o barulho das botas cortadas... plof... plof... plof...
A sua maior contribuição esportiva, no entanto não vingou.
Durante dias de uma semana que chovia, ele se fechou no sótão da casa velha e não permitia que ninguém subisse as escadas.
Escutáva-mos, lá de baixo, o ralar de faca na madeira, barulho de lima afiando, batidas de martelo. Pragas.
De vez em quando ele descia para beber água, suado, nos olhava com olhos ameaçadoramente estanhados...
Bebia a água e subia de novo.
No domingo seguinte não teve jogo. Chovera a semana toda e as carquejas cresceram no campo.
Na quarta-feira, já com sol a pino, recebemos a convocação sutil dele para preparar o palco do espetáculo: “Vão lá, arrancar as carquejas prá domingo, se não quiserem levar uma sumanta de fivela”. Fomos.
No domingo o campo estava bonito. Tinha até goleira com trave em cima das forquilhas que meu irmão mais velho trouxe do mato. As carquejas arrancadas na quarta, demarcavam, já meio amareladas, a linha lateral.
As equipes se formavam naturalmente, conforme o costume; os Fracos (nós) jogavam sem camisa. Os Fortes (eles) jogavam de camisa de cores, feitio e panos variados, a maioria de “riscado”.
Estáva-mos lá, desde as 9 horas, chutando aleatoriamente aquele couro duro, e nada do tio aparecer. Impensável iniciar qualquer partida sem ele.
Lá pelas 9:30 ele surge por entre os sinamomos da mangueira, devidamente paramentado; as botas sem cano do tio Severiano, a meia de algodão, a caneleira de taquara... mas parecia mais ereto, mais duro, mais mecânico...
Os puxa-saco de sempre o rodearam, logo que ele adentrou ao gramado.
Orgulhoso ele apresentou o seu novo invento.
Transformara uma gamela velha da vó em uma peiteira que cobria, desde perto do pescoço até as proximidades do umbigo. Moldara com faca e formão a velha vasilha de cedro, adaptando-a, rudemente, ao seu formato anatômico.
O artefato era preso por duas tiras de couro que passavam pelos ombros, formando um X nas costas e se afivelavam, assim, cruzadas, em outra tira de couro que vinha pela barriga e prendia a gamela na parte de baixo.
Era para “melhor matar a bola no peito”, dizia...
A invenção não vingou.
Primeiro porque não houve, durante o jogo, nenhuma bola alçada na altura adequada para submeter o invento à prova.
Segundo porque a mobilidade do atleta ficou bastante prejudicada, nos lances em que se exigia maior velocidade e penetração na área adversária.
E por último, não se mostrou suficientemente resistente.
Numa falta ocorrida pela meia-direita, à favor do nosso time (os descamisados) o tio foi para a barreira e estoicamente esticou o peito engamelado.
O negro Lúcio tomou distância, arrebitou os dedos e soltou a bomba.
A bola bateu bem no peito do tio, provocando um estalo seco, como o estalo de um porongo verde, jogado na fogueira de São João.
O tio caiu de costas e ficou na grama, gemendo.
Alguém chegou com uma faca e cortou as tiras de couro.
Com a força da bolada a madeira tinha se partido, e na volta, talvez com a queda de costas, ela se contraiu novamente, apertando o couro do peito, desde a teta esquerda até o vazio.
Ficou um vergão feio e saia sangue em algumas partes.
A vó curou com banha de porco, em algumas semanas.
Nunca mais teve jogo de bola.
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