sábado, 29 de outubro de 2011

Kadafi está morto. E agora?...

Nas décadas de 70 e 80, era obrigatória nos meios acadêmicos e democráticos a leitura da revista Cadernos do Terceiro Mundo. Ao menos dentre aqueles que se consideravam “consequentes”.

Criada na Argentina em 1974 por um grupo de jornalistas exilados que combatiam os regimes ditatoriais em seus países, tinha no seu corpo diretivo principal, o brasileiro Neiva Moreira, o argentino Pablo Piacentini e a jovem uruguaia Beatriz Bíssio.

Diferentemente de outras publicações de esquerda ou mesmo de resistência democrática, Cadernos não tinha um caráter panfletário ou de incitamento. Antes pelo contrário. Apesar da sua linha editorial ser francamente anti-ditatorial, terceiro-mundista e anti-imperialista, não se deixava enredar pelo simplismo da dualidade da guerra fria. Suas matérias e reportagens aprofundavam os temas cruciais dos países não-alinhados.

Como toda publicação não subvencionada, sempre esteve às voltas com dificuldades financeiras até que deixou de circular por volta de 2007.

Neiva Moreira voltou ao Brasil após a anistia. Atuou no PDT, partido fundado pelo seu amigo Leonel Brizola e na sua terra, o Maranhão, ao lado do governador Jackson Lago até este ser cassado pelas forças oligárquicas daquele estado.

Pablo Piacentini exerce seu trabalho de cientista político e jornalista na Argentina e Beatriz Bíssio mudou-se para o Brasil, onde igualmente é jornalista.

Estas são as informações que tenho, no momento, desses protagonistas e podem estar carentes de atualização.

Foi numa edição de Cadernos do Terceiro Mundo que li pela primeira vez sobre a Líbia de Kadafi e a sua proposta de Revolução Verde.

Kadafi assumira o poder em 1969 quando um grupo de oficiais nacionalistas, derrubou o rei Idris I, líder religioso sanusi, coroado rei após a Segunda Guerra Mundial.

Kadafi, então coronel, presidia o Conselho da Revolução e criou a Jamairia (República ou “Estado das Massas”) Árabe Popular e Socialista da Líbia, com forte alinhamento político-ideológico com o Pan-Arabismo, movimento que propunha reunir os países de língua árabe em torno de seus objetivos comuns.

Com fortes medidas nacionalistas, Kadafi expulsou os efetivos militares estrangeiros, nacionalizou as empresas, os bancos e os recursos petrolíferos do país. Com os recursos daí advindos, a Líbia tornou-se, até antes da recente guerra civil, o país com maior índice de desenvolvimento humano da África, segundo a ONU.

A revolução cultural, social e econômica desencadeada por Kadafi, gerou graves tensões políticas com os Estados Unidos, Inglaterra e até mesmo com os países árabes moderados, como Sudão, Egito e Chade.

A invasão por parte da Síria e do Egito à Israel na chamada Guerra do Yom Kyppur em 1973, motivou Kadafi a evocar os conceitos do Pan-Arabismo, já que a vitória israelense nessa guerra deveu-se muito ao fornecimento, por parte de alguns países árabes moderados, de combustíveis para a máquina de guerra de Israel.

O uso do petróleo como arma gerou uma das maiores crises energéticas de toda a história. Curiosamente despertou nos países importadores a necessidade de buscarem novas fontes de energia, como a nuclear, a eólica, a hídrica e a descoberta de novas reservas petrolíferas nos Bálcãs, na África (notadamente em Angola) e na América Latina (Venezuela e Brasil), e o uso de fontes renováveis como a bem sucedida experiência do álcool no Brasil, esvaziando os países árabes daquilo que seria o seu maior trunfo.

O sonho de Kadafi de expandir a Revolução Verde, assim entendido a auto-suficiência agrária, o pan-arabismo, a eliminação da influência ocidental, sob a bandeira verde de Maomé, começa a frustrar-se quando em 1982 os Estados Unidos impuseram um embargo às importações de petróleo líbio.

Agora de forma mais aberta, Kadafi começa a apoiar organizações como a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) e, segundo acusações americanas, a patrocinar e estimular o terrorismo internacional. Em 1986 Ronald Reagan ordena um bombardeio da aviação americana a vários alvos militares em Trípoli e em Bengazi. Kadafi se mantém no poder, apesar da morte de sua filha adotiva quando sua casa foi bombardeada, mas começa a perder seu prestígio internacional, inclusive diante dos demais países árabes.

A partir de 1990 o governo líbio procura restabelecer as relações com as potências ocidentais e com os países vizinhos. Adotou uma posição moderada quando da invasão do Kuwait e, posteriormente do Iraque. Mesmo com esta posição de neutralidade, a Líbia continuou sob forte isolamento internacional. Em 1992 a ONU impôs um embargo ao comércio e ao tráfego aéreo líbios, porque Kadafi se negava a entregar dois terroristas líbios acusados do atentado a um avião de passageiros sobre Lockerbie, na Escócia, quando morreram 270 pessoas em 1988.

A década de 90 caracterizou-se pelo afastamento de Kadafi dos antigos aliados; do Irã pelo recrudescimento do fundamentalismo islâmico; dos Palestinos pela disposição destes em negociar uma paz com Israel.

Em 1997 seis oficiais do exército líbio foram fuzilados numa tentativa de Kadafi de acabar com a crescente resistência de grupos religiosos islâmicos ao seu governo.

No bojo das manifestações populares que assolaram os países árabes desde o começo de 2011, a Líbia caminhou rapidamente para a guerra civil, fomentada, de um lado, pelo apoio aos rebeldes por parte dos Estados Unidos, Reino Unido e França, escudados sob a bandeira da OTAN e de outro pela reação truculenta das forças leais à Kadafi contra os manifestantes.

Estaria por trás deste apoio ocidental aos rebeldes, uma revisão que Kadafi havia feito nos contratos de exportação de petróleo pelas companhias petrolíferas estrangeiras, na sua maioria americanas, inglesas e francesas, na tentativa de estabelecer no país um governo mais favorável aos seus interesses.

No dia 20 de Outubro de 2011, Kadafi foi morto em Sirte e no seu lugar assumiu uma frente oposicionista denominada CNT – Conselho Nacional de Transição.

É de se questionar: Se a Líbia era o país com maior desenvolvimento humano da África, porque a Revolução Verde fracassou e teve este melancólico desfecho?

Creio firmemente que fracassou pelos mesmos motivos pelos quais fracassaram todas as revoluções de caráter popular e socialista. O nacionalismo exacerbado e a formação de uma casta dirigente rica e distanciada de seu povo, tornando-se invariavelmente em seus algozes, tal qual os porcos da Revolução dos Bichos de George Orwell. Não tenho conhecimento de nenhuma revolução que tenha fracassado somente pelos ataques e boicotes externos. Ou ela fracassa pelo seu fechamento em si mesma, ignorando o seu caráter internacionalista, como fazem a Coréia do Norte e a Albânia ou são derrotadas pela incompetência de seus dirigentes que se estabelecem acima da própria revolução. Ou pelos dois motivos sobrepostos.

Cabe, neste ponto, a assertiva e a pergunta: Kadafi está morto. E agora?

Vai depender muito de qual grupo prevalecerá dentro da CNT, pois é sabido que essa frente é integrada com bastante representatividade, pelos fundamentalistas islâmicos, que Kadafi já temia ao romper com o Irã em 1993.

No contexto regional, dentre os países árabes, somente a Arábia Saudita permanece como um aliado confiável e fiel da balança em favor do ocidente. Mas também lá já há um recrudescimento da oposição ao rei Abdallah.

Se nas lutas internas pelo poder na Líbia, Egito pós Mubarak, Síria e outros países árabes, inclusive a Arábia Saudita, prevalecer os grupos islâmicos fundamentalistas e radicais, somando-se ao Irã dos Aiatolás, o Pan-Arabismo poderá ser reeditado em outros moldes, aí sim, comprometendo a influência ocidental na região e até mesmo a própria sobrevivência do estado de Israel como nação.

Não sei o que diria Cadernos do Terceiro Mundo sobre este assunto e a análise que faço. Gostaria muito que Neiva Moreira, Pablo Piacentini e Beatriz Bíssio opinassem. Mas seria muita pretensão minha.

Finalizando (e já não sem tempo) se afirmei acima que o desenvolvimento de fontes alternativas de energia e a descoberta de novas reservas de petróleo distenderam a pressão dos países árabes sobre o ocidente, o que então justificaria essa preocupação intervencionista da OTAN sobre a Líbia?

Convém não esquecer que a Líbia, além do Egito, o Chade e o Sudão, isto é quase toda a parte oriental do deserto do Saara, dorme sobre a maior reserva de água subterrânea do mundo, avaliada em 150.000 km3 de água, o Sistema Aquífero Arenito da Núbia. Se para o petróleo há fontes alternativas, para a água não as há.

E como alerta, convém também não esquecer que o Brasil tem a Amazônia e o Aquífero Guarani.


Fontes de pesquisa: Wikipédia / Café História / Cadernos do Terceiro Mundo.

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sábado, 8 de outubro de 2011

"1984" - Da ficção de George Orwell à realidade de hoje


“1984” é um livro que li pela primeira vez em... 1984. Antes já tinha lido “A Revolução dos Bichos” do mesmo autor inglês, George Orwell.

George nasceu Eric Arthur Blair em Motihari a 25 de junho de 1903 e morreu em Londres a 21 de Janeiro de 1950.

Sua obra é marcada por uma inteligência perspicaz e bem-humorada, uma consciência profunda das injustiças sociais, uma intensa oposição ao totalitarismo e uma paixão pela clareza da escrita. Apontado como simpatizante da proposta anarquista, o escritor faz uma defesa da auto-gestão ou autonomismo. A sua crença no socialismo democrático foi abalada pelo "socialismo real" que ele denunciou em Animal Farm, a mesma Revolução dos Bichos que eu já tinha lido tempos atrás.

Ganhei o livro, de presente pelo meu aniversário, numa época em que eu ainda acreditava na Utopia, mas não é esse o enfoque deste texto.

Concluído no ano de 1948 e publicado em 8 de junho de 1949, ganhou o título de “Nineteen Eighty-Four” segundo alguns, pela inversão dos dois últimos algarismos do ano de sua conclusão. Retrata o cotidiano de um regime político totalitário e repressivo no então imaginário ano de 1984. No livro, Orwell mostra como uma sociedade oligárquica coletivista é capaz de reprimir qualquer um que se opuser a ela. A história narrada é a de Winston Smith, um homem com uma vida aparentemente insignificante, que recebe a tarefa de perpetuar a propaganda do regime por meio da falsificação de documentos públicos e da literatura a fim de que o governo sempre esteja correto no que faz. Smith fica cada vez mais desiludido com sua existência miserável e assim começa uma rebelião contra o sistema.

O romance se tornou famoso por seu retrato da difusa fiscalização e controle de um determinado governo na vida dos cidadãos, além da crescente invasão sobre os direitos do indivíduo. Desde sua publicação, muitos de seus termos e conceitos, como "Big Brother", "duplipensar" e "Novilíngua" entraram no vernáculo popular.

Recentemente li em uma publicação do Site “Xapecó – o “X” da Questão”, notícia sobre a implantação de novas câmeras de monitoramento em diversos lugares da pacata cidade. Aliás, hoje em dia não tão pacata, a ponto de justificar a instalação desses olhos eletrônicos.

Smith, na obra de Orwell era permanentemente vigiado por equipamentos estratégicamente instalados por onde quer que andasse, as “teletelas”. Nada escapava dos olhos do Grande Irmão, nem mesmo um esgar, uma expressão facial que pudesse demonstrar qualquer desaprovação ao sistema.

Minha amiga Betty, recentemente manifestava a sua preocupação em relação à segurança e à inviolabilidade de informações pessoais na Internet. Referia-se ela ao fato de que, ao realizar uma pesquisa sobre hotéis na Argentina, imediatamente a sua página no Facebook se encheu de anúncios de agências de viagens, coisa que ela não tinha solicitado especificamente.

E eu cheguei à conclusão de que estamos em pleno 1984 de Orwell.

O “duplipensar” está presente a cada vez em que abrimos um jornal, assistimos à um telejornal ou ouvimos o rádio. As versões de um fato se tornam mais reais que o próprio fato. Um escândalo de malversação de verbas públicas é justificado facilmente pelo nebuloso conceito de bem comum. E esquecido.

Lembro de uma piadinha que correu nos círculos em que eu militava na década de 70 e 80 e que causava mal-estar entre os mais sectários defensores do controle estatal sobre as informações repassadas aos cidadãos.

Consta que um mandatário importante da então “Cortina de Ferro” em visita a um país fora da cortina e de regime político diferente, participou de uma corrida com o presidente desse país. Só os dois participaram. O mandatário importante perdeu, e no dia seguinte os jornais da sua terra noticiavam em manchete de capa:

“ Nosso amado camarada e líder participou de uma corrida a pé em sua visita ao país “tal”. O presidente desse país só conseguiu chegar em penúltimo, enquanto que nosso excelente camarada presidente obteve um magnífico segundo lugar.” Isso é duplipensar.

“Newspeak” é uma língua fictícia utilizada no livro de Orwell, e é descrita como “a única língua no mundo cujo vocabulário diminui a cada ano.” (Orwell, 1984, p.52) Em português esse termo é tratado como “Novilíngua”.

A “Novilíngua” consiste na fusão de duas ou mais palavras em uma só, dando a ela, muitas vezes, o significado de uma frase inteira, sem a preocupação com gramática, etimologia e outros afins dispensáveis no novo regime. Assim, se queremos dizer “hoje o dia está ensolarado” em Novilíngua se diz: “hodisolado”. Econômico e simples assim. Não pode haver espaço para o pensamento. Isso pode ser perigoso.

Exemplos do uso da Novilíngua nos nossos dias? São inúmeros. Abra um e-mail (aliás, e-mail também é novilíngua e quer significar “correspondência eletrônica”) da sua caixa postal. Muito provavelmente encontrarás uma mensagem parecida com esta: “mdesta c rcbo n anx. SDS”.

(Tradução: Encaminho-te esta mensagem com a cópia do recibo no anexo. Saudações.)

Quer mais? Acompanhe uma conversa em uma sala de bate-papo qualquer:

- E aí, blz?

- Blz

- Dcm p/ Sts?

- Qdo?

- Hj...

- Hj?.. Blz.

- Falow.

- Falow.

-):

-):

(Tradução:

- Bom dia (ou boa tarde, boa noite), você está bem?

- Eu estou bem.

- Vamos descer para Santos?

- Quando?

- Hoje...

- Hoje?... Hoje está bom.

- Entendi o seu recado e concordo.

- Também concordo.

- Fico contente.

- Também fico contente.)

As Teletelas do Smith estão presentes em nosso dia-a-dia muito mais do que pensamos. Se você mora em uma casa e tem um mínimo de preocupação com a segurança, certamente você mandou instalar um alarme acoplado à uma ou várias câmeras que se conectam diretamente à uma central. Sua entrada e saída são permanentemente acompanhadas. Nem pense em levar alguma companhia suspeita para um jantar romântico enquanto sua esposa está na praia.

Se você mora em um condomínio, então...

Já no aconchego do seu lar, você se tranca no quarto, fecha as janelas e pensa: Oba... vou ver aquele filmezinho de sacanagem antes que as crianças cheguem da escola. Pensa estar escondido? Negativo. Seu IP já foi rastreado e não demora para você começar a receber ofertas de produtos para crescimento peniano. Ou outro tipo de produto, dependendo do gênero do filme.

No trabalho é a mesma coisa. No começo você fica um pouco constrangido, mas logo se acostuma com aquela câmera apontada para a sua cabeça.

Quando quebrei a perna, fui ao consultório particular do médico que me atendera, para a primeira consulta de revisão, e enquanto aguardava minha vez de ser chamado, na sala de espera, observava os outros pacientes. Um com o braço na tipóia, outro com a perna engessada, mais outro sentado de lado, todos com a expressão dolorida nos rostos. Na parede à nossa frente um cartaz exigia: “Sorria, você está sendo filmado”.

Na semana passada acompanhei a Marta até São Paulo em seus compromissos. Foi nesse dia que comecei a pensar com mais propriedade sobre a vulnerabilidade da nossa privacidade.

Como saímos cedo, decidimos tomar café no caminho. Logo na primeira padaria estava lá o cartaz e a câmera. O Cupom Fiscal não deixava dúvidas: tomamos café as 06:57 do dia 06 de Setembro de 2011 e eu comi pão de queijo. É bem provável que essa informação já esteja armazenada no Banco de Dados de algum laticínio mineiro que, por sua vez instruirá o fazendeiro associado a aumentar a produção da Mimosa.

Vinte e dois minutos depois, exatamente as 07:19 hs, enchemos o tanque do carro em um posto de combustíveis em Taubaté. Embora o carro seja bi-combustível, abastecemos com gasolina, pois na ponta do lápis era mais vantajoso. A maquininha do Cupom Fiscal transmitiu os bits para uma central que os encaminhou a quem de direito: ao governo por causa dos impostos, à distribuidora para regular seus estoques, aos estrategistas de mercado que estão agora analisando a nossa opção. Imagino que logo logo virá um novo aumento da gasolina para que não tenhamos escolha.

Durante todo o percurso, na ida pela Carvalho Pinto / Ayrton Senna, na volta pela Dutra, fomos perseguidos incansavelmente pelas câmeras ao longo da rodovia. Sem considerarmos as dezenas de pedágio e a polícia com seus radares móveis.

No engarrafamento da Marginal, os helicópteros da polícia e do Datena nos observavam do alto. Na reparticão pública em que fomos, nosso documento foi protocolizado as 10:37 hs, Está ali, registrado digitalmente no recibinho e disponível na Grande Rede para quem tem a senha.

Sabem dos nossos passos a cada segundo. É fácil calcular o tempo que gastamos para percorrer de um ponto ao outro e, consequentemente a velocidade que empreendemos. E não adianta tentar enganar.

- Onde o Sr. estava ente as 15:32 e 15:46 do dia 12 de Janeiro de 2011?

- Eu estava preso no trânsito da Marginal Tietê...

Um servidor com cara de nerd que opera uma máquina cheia de botões, a um canto da sala interrompe:

- É mentira, chefe. Nosso sistema registra que ele esteve entre 15h:33min:22seg e 15h:45min:18seg acompanhado por uma loira de blusa bege num motel da zona norte.

- Rapidinha, hein?

Por tudo isso fui pescar no final de semana. Fugir da civilização e de seus controles. Foi difícil encontrar um lugar adequado. Lugares haviam muitos, mas não adequados ao meu propósito de sumir e de me transformar em “impessoa” como escreveu Orwell. Os rios, riachos, vertentes e fios d´água foram todos transformados em pesqueiros organizados, com cancelas automáticas na entrada, câmeras espalhadas e pagos com cartão de crédito e suas consequentes maquininhas.

Sibipiruna

Depois de rodar por horas pelas antigas trilhas dos tropeiros de mulas que serpenteiam a Serra da Mantiqueira em direção ao Rio de Janeiro, encontramos um lugar aparentemente deserto e tranquilo. Improvisamos o acampamento e eu fui para a beira do riachinho, pescar. Peguei uns poucos peixinhos miúdos que não compensavam o esforço, mas valeu pela sensação de não existir. Parece até que essa sensação faz funcionar melhor o nosso metabolismo. Senti vontade e me voltei para o lado do mato. Estava já preparado para regar as raizes de uma sibipiruna quando lembrei do Bastiãozinho, um vizinho de meu pai lá da roça.

Quando ele tinha as suas necessidades, ele ia para perto de um mato, mas em vez de esconder-se adequadamente, ele camuflava a cabeça e deixava tudo o resto à mostra. Questionado sobre esse procedimento ele argumentava:

- Ora, se eu fico virado de frente, acocorado, com as calças arriadas, todos os que passarem pela estrada sairão comentanto: “Olha lá, o Bastiãozinho cagando!...” Mas se eu ficar de costas, só verão uma bunda, sem saberem de quem é...”

Nos dias de hoje essa estratégia não funcionaria porque certamente algum satélite capturaria a imagem que seria imediatamente submetida à um software chamado OBR em Novilíngua ou de “Optical Buttock Recognition” em inglès antigo e pronto, estaria identificado o Bastiãozinho.

Como a minha necessidade era outra, afundei o chapéu na cabeça e abri as suas abas, de modo que, se visto do alto, só apareceria um disco e um jato saindo dele.

Já estava sorrindo malevolamente satisfeito – pronto, seus trouxas, enganei vocês! – quando um susto me fez molhar as pernas da calça e os cadarços do tênis. É que da densa ramagem, oculto na mata, alguém gritou estridentemente:

- BEM-TE-VÍ!.. BEM-TE-VÍ!...

É trauma...


Fontes de pesquisa: Wikipédia / Orwell - 1984

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