sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O Negócio da Bicicleta

 José atravessou o rio por sobre o tronco caído da guajuvira sem dificuldades. Estava acostumado a passar por ali quase todos os dias, carregando a bicicleta. Nas épocas de estio, quando as águas minguavam era mais fácil cruzar pelo lajeado, um pouco mais abaixo, por onde as carretas e as mulas com os cargueiros de moagem passavam. Mas, apesar da chuva ter parado há uns três dias, as águas ainda estavam ligeiras e poderiam molhar os pneus, que depois, com o pó da estrada...

O pai tinha razão. Aliás, tinha sempre razão e por isso vivia bem de negócios, diferente dos vizinhos roceiros que só se prestavam para plantar e colher. Amâncio, o pai, não. Não plantava nem colhia no pedaço de terra que tinha junto ao rio. Quando as crianças eram ainda pequenas, obrigava-se a fincar um palanque, estirar um fio de arame, pregar uma ripa no cercado dos bichos miúdos, mas agora, com os filhos já taludos, eles que arrumassem as cercas e limpassem os chiqueiros. – Tenho que me preocupar com os negócios, dizia.

Vivia de escâmbio, como se falava nos arredores. Trocava uma galinha por um pato, um pato por um ganso, o ganso por um porco, o porco por uma novilha que logo virava vaca e dava cria a um bezerro que trocava por uma carga de milho para dar de comer a bicharada toda que sempre aumentava.

Tinha razão o pai – e era nisso que pensava José – quando ensinava que a aparência da mercadoria era tudo. – Essa colonada come cos zóio. Se pintar um gambá de vermeio eles compram por potrilho.

Então era melhor não arriscar a molhar os pneus da bicicleta que grudaria pó e sujaria os pára-lamas, o varão, os aros, enfim, desvalorizaria a mercadoria.

O Tadeu já tinha feito uma proposta no domingo passado, no jogo de bola. Dava duas galinhas e um frangote no negócio. Ele, como convém a um negociante e ensinara o pai, achou pouco. – Esta é uma Odomo, de quadro reforçado! Vale, pelo menos, aquele terneirote de sobre-ano que dia destes vi pastando no potreiro, perto dos cochos.

 Não, o boizinho era muita coisa. O negócio não saiu naquele dia. Ficaram de pensar mais e se propostearem novamente no sábado, quando tinha o puxirão no Ataliba.

De noite, em casa, contou para o pai.

- Não froxe. Endureça no terneiro. Se vê que não dá negócio, peça um porco, um leitãozote. Mas só as galinhas e o frango não. Em último caso, peça um pato de sobre-lombo. E dê um trato na bicicleta. Lave, escove as rodas, passe graxa na corrente e nas rosetas...

Bem mandado, melhor feito. Tirando uns descascados na pintura do quadro, a mola do bagageiro que tinha quebrado, a falta de dois raios e um amassadinho no pára-lama da frente, a bichinha parecia nova.

A Zizinha – batizada de Marilza – já tinha ido à frente junto com os dois outros irmãos. Ela não ia para a roça com os homens. Ficaria na casa ajudando a mulher do Ataliba nas lidas do almoço. Mas se prestou a levar a enxada dele, José, se bem que o seu interesse e dos irmãos não era bem o de render no eito. Mas o pai mandou... E nunca se sabe quando vamos precisar de um vizinho, um negócio lá prá diante. Não custa...

Na roça não teve oportunidade de falar com o Tadeu. Ele estava na outra ponta do eito, onde o mato era maior. – “Eu é que não sou burro de ir prá lá. Tá um capoeirão danado, e com esse sol...”

No meio da manhã e já com a roça bem adiantada, o Ataliba propôs um descanso, tomar um trago da branquinha que o Arcelino tinha trazido, enrolar o palheiro...

- Tadeu, vancê que é guri novo, bem podia dá uma carreira lá na sanga e pegar uma água fresca. Os porongos tão ali debaixo daquele açoita-cavalo. Encha os dois, faz o favor.

Quando foi buscar a água, viu a bicicleta na sombra, perto do mato. Parecia mais bonita, mais vistosa. Chegou perto, examinou, apalpou... Mas o boizinho era muita coisa...

Quando afundou os porongos para enchê-los avistou a Zizinha, com o vestido levantado acima dos joelhos, sentada no barranco do outro lado, com os pés na água.

- Vixe, Zizinha. Que me assusta! Que faz ai, que nem assombração, cruiz credo!...

- Vim lavá a gamela prá mode iscoiê o arrois. Mas vancê sujo a aua..

- Lava aqui mais prá riba. Prá cá ta limpa.

Encostou os porongos, saltou a sanga e ajudou-a a levantar-se.

- Minina, Cê ta cós pé moiado. Mió inxugá. Vá que gripa.

Não vendo nada ao redor que se prestasse a essa tarefa, tirou a camisa e começou a secar com ela os pés da Zizinha.

- Não carecia. O sol logo secava.

- Carecia sim. É por gosto.

Ela, de súbito fechou as pernas prendendo a mão dele entre os joelhos.

- Faiz cósca. Dá arrepio.

- Voismecê não gosta de cosquinha?

- Inté que gosto. Mas sô moça direita. Pode vir gente...

- Vem não. Tão tudo lá no morro...

- Sô moça direita, já disse. E cê ta levantano meu vistidinho... Mió pará. A mãe ensinô que não é prá ficá levantano o vistido a toa...

Entonces... Só nóis cumbiná prá não sê a toa...

Quando ele voltou para a roça, alguns roceiros já estavam trabalhando, outros, como o Arcelino bicavam os últimos goles da pinga.

- Alas pucha, tchê, demorô. Toma um gole? Tá no fim...

- Não, agradecido. O pai não deixa...

- Pois devia dexá. Faz bem pros miolos, com este sol...

O José do Amâncio se achegou, e depois de beber de um dos porongos perguntou:

- E então? Batemos o brique?

- Puzóia... Tive matutano...

- Eu também tive. Falei com o pai. Se achar que é muito o boizinho, podemos negociar com um porco. Porco grande e gordo, mais as galinhas...

... – e arresolvi fechá o negócio.

- Por um porco? Mas tem que ser dos grandes...

- Não. Pelo terneiro.

- Pelo terneiro? O de sobre-ano? Aquele?...

- Aquele. Fica bem pago.

- Palavra?... Negócio fechado?

- Palavra!... Negócio fechado! Despois da bóia passa lá em casa e pega o terneiro. Já dexa a bicicleta.

No dia seguinte, domingo, logo cedo o Tadeu estava treinando o equilíbrio na bicicleta. Na ladeira até que estava indo bem. Morro acima é que a coisa não ia. Não tinha jeito de aprender a acalcar os pedais um de cada vez. Não se concentrava, pensava na Zizinha. Mas com tempo e treino...

Do outro lado do rio teve churrasco. Amâncio resolveu aproveitar o bom negócio feito pelo filho e trocou com ele o boi por uma leitoa prenhe. Carnearam o boizinho.

Combinaram: É dia de o padre Humberto vir na capela da comunidade rezar a missa. Ele não vive reclamando a cada dois meis que não vamo na missa? Que semo tudo  pecador, que logramo os colonos nos negócios? Pois então. Vanceis mulher vão na missa. Eu e os guri ficamo carneando. Vão e convidem o padre.

Quando as mulheres voltaram com o padre, as costelas já estavam no fogo, no espeto feito com varas de guamirim. O restante da carne estava estendido em mantas no varal das roupas. Três fogos acesos por baixo, com gravetos verdes misturados com a lenha seca, faziam fumaça para espantar as varejeiras.

Na mesa, armada na sombra, perto do rio, com as laterais retiradas da carreta e outras taboas improvisadas, se ajuntaram todos. Padre Humberto ficou numa ponta, Amâncio na outra. Nos lados assentaram-se a filharada toda e mais o Capistrano um rapaz da vizinhança, que quando soube da carneação se ofereceu para ajudar... e foi ficando.

Orgulhoso, José recebia os elogios pelo ótimo negócio.

- Viu agora, padre, que também semo cristão? Fazemos negócios certos com a colonada. A maioria nem vai na missa. E negociam porque querem. Não obrigamos ninguém...

- Eu não criticava vocês, meus filhos. Só manifestava a minha preocupação com vossas ausências. Deus não proíbe a prosperidade desde que sem ostentação e com a devida retribuição à obra do Senhor e a seus enviados...

- Como hoje, padre. Meu filho José fez um bom negócio. Mandei as mulher na missa e convidei o senhor pro almoço...

Um bom negócio. Só falavam nisso. Zizinha baixou os olhos brejeiros e limpou a boca no canto da toalha, como que para disfarçar os pensamentos:

- Que o José, os mano, o pai e a mãe não saibam. Menos ainda saiba o padre Humberto, mas o negócio bom fui eu quem fiz...

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quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A Meia-Canha (Vamos dançar?)

A meia-canha é uma dança e canto do fandango do Rio Grande do Sul. De origem ibérica, aí chegou proveniente da região do Prata.

Para a escolha dos participantes, um moço acena com um lenço, convidando uma parceira, que faz o mesmo sinal para outro rapaz, e assim por diante, até que estejam reunidos os pares. Ao som de uma polca forma-se uma roda, e um rapaz vai para o centro, tirando uma das moças. Sempre dançando, a roda gira em sentido contrário ao do par central. Depois de muitas negativas e requebros, o dançarino que está no centro ordena a parada da música e, de frente para sua dama, recita uma quadra que é respondida por ela. Recomeça a música, o par volta a dançar e em seguida a moça leva o rapaz até seu lugar na roda. Convida então outro moço e repetem-se os cantos e danças.

Meia-canha é o nome dado, no Rio Grande do Sul, à polca-de-relação ou polca-de-versos. Segundo Barbosa Lessa e Paixão Cortes, “com o nome de media-canha ou meia-canha ou ainda ‘relacione’ essa troca de versos subiu com o tropeiro de mulas através de Santa Catarina, Paraná e região sul de São Paulo, e o sabor castelhano estava presente inclusive na ordem que se dava ao violeiro na hora de dizer o verso: ‘pára la guitarra, pra eu dizer minha relación’. Na região dos tropeiros no sul de São Paulo essa mesma meia-canha para trocar recitados foi também conhecida pelos nomes de guitarra e arrasta-pé”.

Também designada meia-cana.

Fonte: Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora.

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Assisti a muitas dessas danças quando era meninote. Nos bailes, em que se programara a “meia-canha”, era esta a atração mais esperada.

Era a forma de um rapaz ou de uma moça dizer de público as suas intenções e seus sentimentos. E em versos simples, nem sempre muito rimados.

Embora a maioria dos versos fossem improvisados ou, por outra, criados ao longo da semana para aquela ocasião específica, algumas quadrinhas ficaram célebres e encaixadas no momento específico, eram como uma declaração de amor ou um pedido de namoro e casamento.

O rapaz poderia declamar os seguintes versos:
Águas claras correntinas,
que uma só beleza nasce.
Infeliz seria eu
se te visse e não te amasse.

Ao que a prenda poderia responder:
Venho de longe bem longe,
somente para te ver.
Chega à janela querido,
vem minh'alma socorrer.

Pronto; sinal de que estava começando ali um namoro, que o tempo diria se iria frutificar.

Mas nem sempre a investida poética-romântica encontrava eco na companheira de dança:

Peão:
Não te encosta na parede
que a parede solta pó
te encosta aqui nos meus braços
que esta noite eu dormi só.

Prenda:
Não te encosta na parede
que a parede solta pó
e encosta no relho do papai
que na ponta tem um nó.

Quando um rapaz (peão) recitava algum verso que, por algum motivo deixava a prenda encabulada e sem resposta, outro peão da roda poderia tomar para si as suas dores:

Sempre existe resposta
Pra gente assim como tu
Falo eu pela prendinha
Fala o rabo do tatu.

Quase sempre essa intervenção não acabava bem. Haveria um acerto de contas depois do baile.

O nome “Meia-Canha” diz-se, teve origem porquê, durante a dança e os versos, circulava na roda formada, uma guampa de cachaça, também chamada de “cana” ou “canha”. Então poderia acontecer a seguinte situação:

Peão:
Sou um gauchão completo
da presilha até a ilhapa
respeito teu pai prendinha
mas hoje tu não me escapa.

A prenda respondia:
Da presilha até a ilhapa
com cara de sorro manso
com esse bafo de cachaça
contigo é que eu não danço.

Já o gaúcho enamorado poetizava:
Eu não namoro teus cabelos
Nem o brinco nas tuas oreia
namoro teus lindos zóio
debaixo da sobranceia.

E a prenda respondia, dando ao verso um sentido bastante dúbio e fora do contexto:
No tempo que tu me tinha
eu não queria te ter,
agora que eu te tenho
é tu que não quer me ter.

A Jovem Guarda influenciou também a Meia-Canha. A ponto de um rapaz, lá do interior de Lagoa Vermelha, declamar estes versos para uma prenda, demonstrando a todos a sua modernidade:

Atirei um tição n’água,
De pesado foi ao fundo.
Os lambaris comentaram
É UMA BRASA, MORA?...

Já lá pelo fim da dança, quando a guampa de cachaça tinha dado várias voltas, um peão qualquer se arriscava e misturava versos de várias quadrinhas, saindo algo parecido com isto:

Lá vem o sol nascendo,
Redondo como um tamanco.
Se tu não gostas de mim,
Porque roubastes minha égua?...

(Bons tempos!...)




 
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