domingo, 20 de março de 2011

Garibaldi e o Seival


"– Tá louco, homem!.. Quer levar a balsa por terra, que nem o Garibaldi? Sempre descemos pelo meio. Por que isso agora?... "

Esta frase, gritada em desespero pelo balseiro Vicente ao prático Fulgêncio, no livro “Balseiros do Rio Uruguai”, suscitou dúvidas quanto ao seu significado, entre os leitores da Torre e entre alguns poucos a quem pude enviar um exemplar produzido em casa, artesanalmente.

Referia-se o personagem Vicente, ao episódio da Guerra dos Farrapos, quando Garibaldi, cercado na Lagoa dos Patos pelas tropas imperiais, buscou uma saída para o mar através da terra, arrastando o barco Seival e o Farroupilha até as praias de Tramandaí. Vejam a transcrição do texto, extraído da Wikipédia e da Página do Gaúcho - rsvirtual:
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Com o Rio Grande (a cidade) tomado pelas forças imperiais, a saída de Garibaldi foi transportar os barcos Seival e Farroupilha por terra entre a Lagoa dos Patos e Tramandaí.

A historia desses barcos é, também, um pouco da história de Giuseppe Garibaldi.

As forças imperiais fecharam cerco contra os revolucionários farroupilhas que não dispunham de uma saída para o mar.

Bento Gonçalves, o chefe revolucionário havia sido preso e levado para o Rio de Janeiro. Na prisão conheceu Garibaldi, revolucionário italiano que juntamente com outros compatriotas, haviam fugido para o Brasil, pois no seu país estavam com as cabeças a prêmio. Desse contato entre Garibaldi e Bento Gonçalves na prisão, nasceu o apoio dos exilados italianos à rebelião dos pampas, nos idos de 1837.

Os rebeldes gaúchos nunca tiveram em mente a insurreição popular, como na Itália pregavam e sonhavam os rebeldes italianos. Mas as diferenças não impediram que estes se engajassem na luta dos farroupilhas com todo o ardor e idealismo. “A guerra que sustentamos não é individual, é da América e do princípio republicano”, escrevera Rosseti, outro companheiro de Garibaldi que chegou a dirigir o Jornal dos Farrapos, chamado de “O POVO”.

Ao visitar Bento Gonçalves na Fortaleza das Lages, onde encontrava-se preso em 24 de janeiro de 1837, Garibaldi recebeu deste um documento, no qual lhe dava o direito de apresar navios do Império, destinando metade do valor da carga à revolução.

De posse desse documento, Garibaldi dirige-se ao sul, viajando a bordo do barco Mazzini com 12 marinheiros. Ainda no Rio de Janeiro, aprisiona a sumaca (pequeno barco de dois metros) Luiza e rebatiza com o nome de Farroupilha e faz tremular pela primeira vez em águas brasileiras, a bandeira da República Rio-Grandense.

Em dois meses alguns barcos já estavam construídos, entre eles o SEIVAL, construídos numa curva do Rio Camaquã, na estância de Ana Gonçalves, irmã de Bento e financiados por ela. Mas nenhum esforço foi suficiente para impor o domínio farroupilha sobre a Lagoa dos Patos.

Estando o Rio Grande e São Jose do Norte ocupados pelas forças imperiais, e pressionada pelo governo brasileiro a repelir os farroupilhas, os estrategistas da Republica conceberam o plano de ocupar Laguna, no estado de Santa Catarina.

Davi Canabarro chefiava as operações terrestres e Garibaldi, comandaria a força naval integrada por dois lanchões o Farroupilha e o SEIVAL, com uma tripulação de cerca de 70 homens. Mas, como sair da Lagoa dos Patos com as forças imperiais guardando o Porto de Rio Grande?

Enquanto o comandante imperial John Grenfell rumava para o Rio Camaquã, Garibaldi e seus homens escapavam pelo RIO CAPIVARI, na parte nordeste da Lagoa. Essa viagem se transforma no mais impressionante empreendimento da Revolução Farroupilha: Enormes rodas de carreta foram construídas, de uma solidez a toda a prova, com cubos proporcionais ao peso dos lanchões e os barcos foram transportados por terra até barra do Rio Tramandaí, numa distância de 60 quilômetros puxadas por cem bois. A manobra engendrada por Garibaldi foi um sucesso, apesar de excepcionais dificuldades, pois a marcha era feita através dos campos encharcados pelas chuvas. Os lanchões chegaram ao mar, desfraldando as bandeiras da República Rio-Grandense, para espanto do comandante das forças navais do Império.

Somente o navio mais resistente, o SEIVAL, comandado pelo americano JOHN GRIGGS, chegou a Laguna. O Farroupilha que levara a bordo GARIBALDI, afundou perto do Rio Araranguá, na costa catarinense. Mas o italiano conseguiu salvar-se e sobreviver ao naufrágio.

Garibaldi no comando do SEIVAL e Canabarro, que seguia á frente da Cavalaria, pelo Litoral, surpreenderam os imperiais em Laguna. Os imperialistas fogem, deixando para tras 14 embarcações mercantes, que são anexadas a frota farroupilha, além de canhões, armas, munições e fardamentos. O povo recebe os revolucionários sob vivas. Finalmente os farrapos tem seu porto de mar.

Em julho de 1839, eles proclamaram a República Catarinense, também, chamada de República Juliana, por ter sido fundada em julho. Na visão dos farroupilhas, é o começo da construção do sistema federativo. A administração da República se instala pomposamente em um casarão da pequena cidade de Laguna. Mas diante da fragilidade de comando e organização, o sonho duraria apenas quatro meses.

Com audácia excessiva, os farroupilhas avançam para o norte, tentam tomar a ilha de Santa Catarina e a Cidade de Desterro. Para essa missão preparam tropas e embarcações nas praias de Pinheira e Massiambu. Ao amanhecer de 28 de setembro, no entanto, são surpreendidos pelo desembarque de forças imperiais muito superiores. Na desordenada retirada, os farrapos destroem e queimam tudo o que não podem levar.

A ordem do General Canabarro é intensificar a guerra de corso, visando dificultar as ações da frota imperial. John Griggs, comandando o barco Caçapava; Garibaldi, o novo barco Rio Pardo e outro italiano, Lourenço Valerigini, o SEIVAL, rumam para Santos no litoral paulista. Perseguidos por forças superiores voltam para o sul, refugiando-se em Imbituba, onde é travado violento combate.

Em 15 de novembro de 1839, um maciço ataque das forças imperiais a Laguna, em que se combinaram a marinha de guerra, a cavalaria e a infantaria, onde os farroupilhas são expulsos.

A esquadra comandada por Davi Canabarro se retira pelo litoral, refugiando-se em Torres, já no território rio-grandense. Outra parte das forças terrestres resiste em Lages, mas não consegue sustentar sua posição frente às tropas imperiais.

Com a revolução em declínio Garibaldi volta ao sul, acompanhado de Ana Ribeiro da Silva, conhecida como ANITA GARIBALDI. Bela catarinense, natural de Morrinhos, que aderiu ao movimento revolucionário por ocasião da proclamação da República Juliana, unindo-se a Garibaldi, lutando e combatendo a seu lado em Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Uruguai e Itália. Garibaldi, ainda, constrói novos barcos e tenta em vão tomar São José do Norte. Em 1841, desesperançado com o futuro da revolução, ele e Anita abandonam os farrapos.

Tropeando cerca de mil cabeças de gado, como pagamento pelos serviços prestados aos farroupilhas, vão para o Uruguai, onde se casam e formam a "Legião Italiana" para combater os blancos de Rosa na República Argentina.

Considerado "Herói de dois Mundos", em 1848, retorna a Itália, onde forma um exército de voluntários que conquista para seu país grande parte do território situado ao sul da península, bem como a Sicília, conquistando ainda o Reino de Nápoles, em poder dos Bourbons. Quando estourou a guerra contra a Áustria, comandou no Tirol, um EXÉRCITO DE 35.000 voluntários, vencendo seis batalhas em 17 dias. Voltou a combater
na guerra Franco-Prussiana em 1870 quando derrotou o exército alemão em Chatillon. Foi deputado por Roma.

Em 1882, em sua ilha de Caprera, perto de Sardenha, morre aos 75 anos de idade, GUISEPPE GARIBALDI, considerado um dos maiores mestres na história da estratégia militar revolucionária.
(Última foto: réplica miniaturizada em madeira, do barco Seival)

domingo, 13 de março de 2011

O Duelo dos Farrapos


Dentre os escritores gaúchos, e são muitos, gosto de ler João Simões Lopes Neto. Sem menosprezo a outros grandes, como Moacir Scliar (recentemente falecido), Érico Veríssimo, Luiz Fernando Veríssimo, Cyro Martins, Lya Luft, Mário Quintana... etc... etc... ah, e meu saudoso mestre Fidélis Dalcin Barbosa, gosto de ler João Simões pelo resgate literário que ele fez de causos e estórias ouvidas na infância, contadas ao redor do fogo, entre uma cuia e outra de mate. Estórias e histórias que povoavam de medo e mistério as insones noites infantis.

João Simões colocou em textos o linguajar simples e chulo do gaúcho campeiro, a sua interpretação do mundo a partir da sua vivência e da sua realidade. O que era (e ainda é em algumas ocasiões e por alguns) motivo de chacota e riso, nas obras de João Simões virou literatura. Para alguém, como eu que vivi e ainda convivo com esse meio rural, dá gosto ler em contos e causos imortalizados, expressões de uso corrente entre os campeiros, sem que precisemos nos policiar
para não ferir ouvidos mais eruditos.

Entendo que, para quem não teve esse convívio, muitas expressões e palavras da obra de João Simões Lopes Neto, são de difícil interpretação. Mas é fielmente como se expressava e em alguns lugares ainda se expressa o gaúcho interiorano.

Já publiquei aqui alguns contos de João Simões. Vejam como ele narra um dos fatos marcantes da Revolução Farroupilha: o duelo entre o General Bento Gonçalves e o Coronel Onofre Pires, seu primo e companheiro de armas.

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O DUELO DOS FARRAPOS

Já um ror de vezes tenho dito - e provo - que fui ordenança do meu general Bento Gonçalves. Este caso que vou contar pegou o começo no fim de 42, no Alegrete e foi acabar num 27 de fevereiro, daí dois anos, nas pontas do Sarandi, pras bandas e já pertinho de Santana.
Foi assim. Tenho que contar pelo miúdo, pra se entender bem. Em agosto de 42, o general, que era o presidente da República Rio-Grandense - vancê desculpe… estou velho, mas inté hoje, quando falo na República dos Farrapos, tiro o meu chapéu!... - o general fez um papel, que chamavam-lhe - decreto - mandando ordens pr'uma eleição grande, para deputados; estes tais é que iam combinar as leis novas e cuidar de outras cousas que andavam meio à matroca, por causa da guerra. Em setembro houve a eleição; em outubro já se sabia quem eram os macotas votados, que eram quase todos os torenas que andavam na coxilha. O jornal do governo deu uma relação deles e dos votos que tiveram, que eu sabia, mas já esqueci. Por sinal que esse jornal chamava-se - Americano - e tinha na frente um versinho que saía sempre escrito e publicado e que era assim, se bem me lembro:

"Pela Pátria viver, morrer por ela; Guerra fazer ao despotismo insano; A virtude seguir, calcar o vício; Eis o dever de um livre Americano".

Em novembro, os deputados, que eram trinta e seis, mas que só se apresentaram vinte e dois, juntaram-se em assembléia; em dezembro, logo no dia um, foi então a cerimônia principal. O general foi em pessoa, como presidente, com a ministrada, os comandantes de corpos e outros topetudos, e aí fez uma fala muito sisuda e compassada, que todos escuitaram quietos, só sacudindo a cabeça, como quem dizia que era mesmo como o general estava lendo no escrito.

Uê!... e que pensa vancê?... Estava tudo na estica, sim senhor: fardas novas, bainhas de espada, alumiando; redingotes verdes ou azuis com botões amarelos, padres com as suas batinas saidinhas; um estadão! E famílias, muita moçada fachuda, povaréu, e até uma música.

Eu e o outro ordenança, os dois, mui anchos, de gandola cobrada. Por esse entrementes, no Estado Oriental, andava gangolina grossa entre Oribe e Rivera, que eram os dois que queriam o penacho de manda-tudo. Volta e meia as partidas deles se pechavam e sempre havia entrevero. Ah! se vancê visse a indiada daquele tempo… cada gadelhudo... Ah! bom!.. Mas, como quera, onde se encontrasse, a nossa gente entropilhava-se bem com a deles. E mesmo era ordem dos superiores. Quando íamos mal da vida, já pelas caronas, nos bandeávamos para o outro lado da linha; lá se churrasqueava, fazia-se uma volteada de potrada e voltávamos à carga, folheiritos no mais!

O barão Caxias, que era o maioral dos caramurus, mordia-se com estas gauchadas. Mas tanto Oribe como Rivera nos codilhavam quando podiam, porquanto faziam também suas fosquinhas aos legais... apertavam o laço pra nós, mas afrouxavam a ilhapa pra eles... Vancê entende?... Pau de dois bicos!...

- Mas, vá vancê escuitando. Rabo-de-saia é sempre precipício pros homens... Não vá vancê cuidar que no caso andou mulher botando fungu no coração de ninguém, não, senhor; a cousa foi muito outra, de alrifage… Naquele novembro de 42, quando os deputados foram-se ajuntando, de um a um, vindos de todos os rumos da província da República e havia na vila do Alegrete movimento de comitivas e piquetes, um dia, já à boquinha da noite, chegou uma carreta de campanha, mui bem toldada, com boiada gorda, e escoltada por um acompanhamento grande, de gente bem montada e armada. Chegou o combói e parou em meio da praça; e logo o que vinha de vaqueano cortou-se e foi apresentar o passe e outros papéis; e foi dizendo que a pessoa que vinha na carreta era uma senhora-dona viúva, que trazia ofício pra o governo e que era sobre uns gados que haviam sido arrebanhados e cavalhadas, e prejuízos e tal, e mais uma conversa por este teor e com mais voltas que um laço grande enrodilhado...

Foi isso o que correu logo no redepente da curiosidade. Papéis foram que a tal dona trazia, que logo o general mandou chamar os deputados e os ministros e depois se trancaram todos numa sala grande; e depois despachou um capitão para ir buscar a figurona. E ela veio; e mal que chegou o general veio à porta, fez um rapapé rasgado e foi com ela pra tal sala onde estavam os outros. Se era linda a beldade!... Sim, senhor, dum gaúcho de gosto alçar na garupa e depois jurar que era Deus na terra!.

E destorcida, e bem-falante; e olhava pra gente, como o sol olha pra água: atravessando! Dentro da sala, fechada, ia um vozerio dos homens; depois serenava; parece que eles estavam mussitando; e a voz da dona epenicava, hablando un castellano de mi flor! Lá pelas tantas levantaram o ajuntamento; o mesmo capitão foi levar a dona. E de manhã, nem carreta, nem boiada nem comitiva apareceram mais. Depois é que vim ao conhecimento que aquela figurona tinha vindo de emissária. Rivera era mais valente; Oribe era mais sorro: mas, os dois, matreiraços!... Agora, qual dos dois, pra disfarçar dos caramurus o chasque, mandou, em vez dum homem, aquela vivaracha, qual dos dois foi, não pude sondar. Era assunto encapotado...

Depois desse dia começou a haver um zunzum mui manhoso contra o general. Não sei se era inveja, ou intrigas ou queixas ou ganas que alguns lhe tinham. As cousas foram-se parando embrulhadas na tal assembléia e uma feita, não sei por que chicos pleitos o general e o coronel Onofre Pires tiveram um desaguisado; o general deu as costas, num pouco caso e o coronel saiu, num rompante, batendo forte os saltos dos botins.

Em 43 houve outra arrancada braba, foi quando mataram um Paulino Fontoura, que era um pesado. Houve outro bate-barbas entre o general e o coronel Onofre, que era mui esquentado e cosquilhoso. Mas logo os chefes todos se desparramaram, porque o barão Caxias andava na estrada, levantando polvadeira. E brigou-se! Em S. Gabriel, na Vacaria, em Ponche Verde, no Rincão dos Touros. O governo tinha saído do Alegrete e estava outra vez em Piratinim; aí por perto peleou-se, e no Arroio Grande, em Jaguarão, nas Missões, sobre o Quaraim, em Canguçu, em Pai Passo. Que ano que bebeu sangue, esse!

E quando o exército se amontoou todo, pra lá do Ibicuí e depois foi estendendo marcha, houve um conselho grande de oficiais; e aí se falou outra vez na emissária, a fulana, aquela da carreta, no Alegrete. Aí, então, os dois galões-largos se contrapontearam outra vez. A gente como eu é bicho bruto e os graúdos não dão confiança de explicar as cousas, por isso é que eu não sei muitas delas: tenência não me faltava; mas como é que eu ia saber as de adentro dos segredos?...

Já sobre o Garupá - vancê não conhece? são os campos mais bonitos do mundo! - aí os homens se cartearam. Então já era o ano 44. O coronel escreveu barbaridades; o general respondeu com aquele jeito dele, sisudo. E quando foi no dia 27 de fevereiro o general me chamou e mandou que eu fosse levando pela rédea, para a restinga, os dois cavalos que estavam atados debaixo dum espinilho; era um picaço grande e um cobrado. Fui andando; lá longe ia descendo um vulto, atrás de mim vinha outro. E devagarinho, como quem vai mui descansado da sua vida, os dois. Ah! esqueci de dizer a vancê que atravessado debaixo da sobrecincha de cada flete, vinha uma espada. Reparando, vi que as duas eram iguais, de copo fechado e folha grande, das espadas de roca, que só mesmo pulso de homem podia florear. E quando parei e os dois vultos se chegaram, conheci que eram o meu general e o coronel Onofre. E desarmados… Mas como chegaram, cada um despiu a farda, que botou em cima dos pelegos e desembainhou a espada que vinha. O cobrado era do coronel; o picaço, do general. Então o general deu ordem:

- Espera aí, com os cavalos!

E o coronel também: - Bombeia; se chegar alguém, assobia!

E rodearam a restinga, para o outro lado. Então é que entendi a marosca: eles iam tirar uma tora, dessas que não se fira duas vezes entre os mesmos ferros... Maneei os mancarrões e com um olho no padre, outro na missa, por entre as ramas da restinga, fui espiar a peleia. Estavam já, frente a frente, de corpo quadrado. O sol dava a meio, para os dois. O general Bento Gonçalves era sacudido no jogo da espada preta; meneava o ferro, que chispava na luz, como uma fita de espelho; o coronel Onofre parava os botes e respondia no tempo, mas com tanta força que a espada assobiava no coriscar. Nisto o general pulou pra trás, fincou a espada no chão e pegou a tirar tacão da bota, que se despregara. O coronel encruzou os braços, e a espada dele ficou dependurada da mão, como dum prego. Pra um que quisesse aproveitar... Mas qual... aqueles não eram gente disso, não!

E cruzaram, de novo. Em cima da minha cabeça um sabiá pegou a cantar… e era tão desconchavado aquele canto que chora no coração da gente, com aqueles talhos que cortavam o ar, que eu, que já tinha lanhado muito cristão caramuru, eu mesmo, fiquei, sem saber como, com os olhos nos peleadores, os ouvidos no sabiá, mas o pensamento andejando... nos pagos, no meu padrinho, no Jesus Cristo do oratório da minha mãe...
Os ferros iam tinindo, E nisto, o coronel deu um -ah! - furioso, caiu-lhe da mão a espada… e a sangueira coloreou pelo braço abaixo, desarmado, entregue!... Pra um que quisesse aproveitar... Mas qual! aqueles não eram gente disso, não! O general tornou a cravar a espada na terra e veio ao ferido com bom jeito. Pegou o braço, viu o ferimento; e com um lenço grande que levantou do chão, do lado do chapéu, atilhou o talho para estancar o sangue.

O outro, calado, nem gemia. Depois o general tornou a pegar da espada, fez uma inclinação de cabeça ao coronel e caminhou pra cá… Foi o quanto eu me atirei pra trás e me acocrei perto dos cavalos. Vestiu a farda, embainhou a espada e montou. Então me disse:

- Agora vem gente, que eu vou mandar. Não te movas daí, antes. E deu de rédea, a galope, para o acampamento.

E no silêncio que ficou, só ficou balançando no ar o canto do sabiá, na restinga: do outro lado, o sangue do coronel, pingando nos capins; deste lado, eu, sabendo, mas não podendo me intrometer...

- Agora veja vancê se não foi mesmo o fungu daquela tal dona - emissária dum dos dois sorros castelhanos - que veio transtornar tanta amizade dos farrapos?...

Ela só não pôde foi mudar o preceito de honra deles: brigavam, de morte, mas como guascas de lei: leais, sempre!

Pois não viu, naquelas duas vezes?… Pra um que quisesse aproveitar...

E creia vancê, que lhe rezei este rosário sem falha duma conta, apesar de já sentir a memória mais esburacada que poncho de calavera... Pois faz tanto ano!...
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