sábado, 28 de novembro de 2009

A GUERRA DO CONTESTADO


Tenho referido aqui na Torre, já por várias vezes, a Guerra do Contestado ou fatos a ela relacionados.

Apesar de sua dimensão e importância histórica, este conflito é pouco conhecido, não só fora das fronteiras onde ele ocorreu, mas também dentro delas.

Não se pode negar que a Guerra do Contestado foi determinante para o estabelecimento do modelo colonizatório do meio-oeste e oeste de Santa Catarina, influenciando a cultura da região e dando origem à muitas cidades, algumas antigos redutos rebeldes, outras antigos povoados erguidos ao longo do trecho em construção da estrada de ferro São Paulo – Rio Grande do Sul, estopim importante, mas não único, para a explosão da revolta.

Recolho aqui, uma síntese do que foi a Guerra do Contestado.

Costumo dizer, (ou repetir, já que a frase não é minha) que não tivemos aqui um Euclides da Cunha, e talvez por isso, essa importante página da nossa história tenha sido relegada à um mero acidente de percurso para a República e para o estabelecimento do modelo exploratório e desenvolvimento capitalista que se implantou.
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A Guerra do Contestado (1912-1916)

Povoamento e Disputa

A ocupação do planalto serrano foi diferente da do litoral catarinense na sua composição de recursos humanos. As escarpas serranas, densamente cobertas pela Mata Atlântica, junto com os povos indígenas, representavam sérios obstáculos para o povoamento da região.

A ocupação se deu através do comércio de gado entre o Rio Grande do Sul e São Paulo já no século XVIII, fazendo surgir os primeiros locais de pouso. A Revolução Farroupilha e Federalista também contribuíram para o aumento de contingente humano, que buscavam fugir dessas situações beligerantes. Em 1853 começa a disputa de limites entre Santa Catarina e Paraná, quando este último se desmembra de São Paulo e firma posse sobre o oeste catarinense.
Com a constituição de 1891, é assegurada aos Estados o direito de decretar impostos sobre as exportações e mercadorias, como também indústrias e profissões, o que acirra ainda mais a questão dos limites, pois a região era rica em ervas.

Em 1904 Santa Catarina tem ganho de causa perante o Supremo Tribunal Federal, mas o Paraná vai recorrer perdendo novamente em 1909 e 1910. Porém a discussão não finda por aqui, sendo resolvida em 1916 quando os governadores Felipe Schmidt (SC) e Afonso Camargo (PR), por intermédio do Presidente Wenceslau Bráz, assinam um acordo estabelecendo os limites atuais entre os dois estados.

Vale lembrar que essa disputa não tinha muita relevância na população, pois o poder era sempre representado pelos coronéis, tanto fazia pertencer a Santa Catarina ou ao Paraná.

O poder dos monges

A figura dos monges teve valor fundamental para a questão do Contestado, sendo mais destacado o José Maria. O primeiro monge foi João Maria, de origem italiana, que peregrinou entre 1844 e 1870 quando morre em Sorocaba. João Maria levava uma vida extremamente humilde, e serviu para arrebanhar milhares de crentes, porém não exerceu influência nos acontecimentos que viriam a ocorrer, mas serviu para reforçar o messianismo coletivo.

O segundo monge, que também se chamava João Maria surge com a Revolução Federalista de 1893 ao lado dos maragatos. De começo vai mostrar sua posição messiânica, fazendo previsões a respeito dos fatos políticos. Seu verdadeiro nome era Atanás Marcaf, provavelmente de origem Síria. João Maria vai exercer forte influência sobre os crentes, que vão esperar pela sua volta após seu desaparecimento em 1908.

Essa espera vai ser preenchida em 1912 pela figura do terceiro monge: José Maria. Surgiu como curandeiro de ervas, apresentando-se com o nome de José Maria de Santo Agostinho. Ninguém sabia ao certo qual a sua origem, seu verdadeiro nome era Miguel Lucena Boaventura e, de acordo com um laudo da polícia da Vila de Palmas/PR, tinha antecedentes criminais e era desertor do exército.

Dentre as façanhas que deram fama ao monge José Maria, podemos destacar a ressurreição de uma jovem, provavelmente vítima de catalepsia, e a cura da esposa do coronel Francisco de Almeida, acometida por uma doença incurável. O coronel ficou tão agradecido que ofereceu terras e uma grande quantidade de ouro, mas o monge não aceitou, o que ajudou ainda mais a aumentar a sua fama, pois passou a ser considerado santo, que veio à terra apenas para curar e tratar os doentes e necessitados.

José Maria não era um curandeiro vulgar, sabia ler e escrever, anotando propriedades medicinais em seus cadernos. Montou a "farmácia do povo" no rancho de um capataz do coronel Almeida, onde passou a atender diariamente até tarde da noite.

As riquezas da região

A região planaltina vai exercer grande cobiça entre os Estados de Santa Catarina e Paraná, assim como para o Grupo Farquhar (Brazil Railway Company), como veremos adiante, apropriando-se do maior número de terras possíveis.

A vida econômica da região, durante muito tempo, vai girar em torno da criação extensiva de gado bovino, na coleta da erva mate e na extração de madeira, material empregado na construção de praticamente todas as residências. Os ervais encontravam seu mercado na região do Prata.

Nas terras dos coronéis os agregados e peões podiam servir-se das ervas sem qualquer proibição, porém quando o mate adquiriu valor comercial, os coronéis começaram a explorar a coleta abusiva do mate em suas terras.

Como região fornecedora de gado para a feira de Sorocaba e erva mate para os países do Prata, o planalto catarinense inseria-se economicamente em nível nacional, no modelo agrário-comercial-exportador dependente.

Brazil Railway Company

Com a expansão da área cafeicultora brasileira, surgiu a necessidade de se interligarem os núcleos urbanos com a região sulina, para que esta os abastecesse com produtos agro-pastoris. É criada então uma comissão para a construção de uma Estrada de Ferro para ligar esses dois pólos.

A concessão da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, iniciou com o engenheiro João Teixeira Soares em 1890, abandonando o projeto em 1908, transferindo a concessão para uma empresa norte-americana Brazil Railway Company, pertencente ao multimilionário Percival Farquhar, que além do direito de terminar a estrada, ganha também o direito de explorar 15 km de cada lado da estrada.

Farquhar cria também a Souther Brazil Lumber and Colonization Co., que tinha por objetivo extrair a madeira da região e depois comercializá-la no Brasil e no exterior. Além disso, a empresa ganha também o direito de revender os terrenos desapropriados às margens da estrada de ferro. Esses terrenos seriam vendidos preferencialmente aos imigrantes estrangeiros que formavam suas colônias no sul do Brasil.
Para a construção do trecho que faltava da ferrovia, a empresa contratou cerca de 8000 homens da população urbana do Rio de Janeiro, Santos, Salvador e Recife, prometendo salários compensadores.

Ao encerrar a construção da ferrovia, esses funcionários foram demitidos, sem ter para onde ir pois a empresa não honrou o acordo de levá-los de volta ao término do trabalho. Passam então a engrossar a população carente que perambulava pela região do Contestado.

A Brazil Lumber providencia a construção de duas grandes serrarias, uma em Três Barras, considerada a maior da América do Sul, e outra em Calmon, onde se dá início às devastação dos imensos e seculares pinheirais.

A Guerra

A guerra inicia-se oficialmente em 1912, com o combate do Irani, que resultou nas mortes do monge José Maria e também do coronel João Gualberto, e vai até a prisão de Adeodato, último e mais destacado chefe dos fanáticos, em 1916. É também neste ano que é assinado o acordo de limites entre Santa Catarina e Paraná.

Durante esse período, podemos observar uma mudança nos quadros dos fanáticos com a adesão dos ex-funcionários da Brazil Railway Company. Junta-se também ao movimento um expressivo número de fazendeiros que começavam a perder terras para o grupo Farquhar e para os coronéis. Com essas mudanças o grupo vai tornar-se mais organizado, distribuindo funções a todos, utilizando também táticas de guerrilha.

No episódio em que José Maria monta sua "farmácia do povo" nas terras do coronel Almeida, cresce absurdamente sua popularidade, sendo convidado a participar da festa do Senhor do Bom Jesus, em Taquaruçu – município de Curitibanos. Atendendo ao convite, José Maria participa acompanhado de 300 fiéis, e ao terminar a festa José Maria continuou em Curitibanos atendendo pessoas que não tinham mais aonde ir. Curitibanos era uma cidade sob o domínio do coronel Francisco de Albuquerque que, preocupado com o acúmulo dos "fiéis" manda um telegrama para a capital, pedindo auxílio contra "rebeldes que proclamaram a monarquia em Taguaruçú", sendo atendido com o envio de tropas.

Diante dessa situação, José Maria parte para o Irani com toda essa população carente. Porém na época Irani pertencia a Palmas, sob controle do Estado do Paraná, que via nesse movimento de pessoas uma "estratégia" de ocupação por parte do Estado de Santa Catarina. Logo são enviadas tropas do Regimento de Segurança do Paraná, sob o comando do coronel João Gualberto, que junto com José Maria, morre no combate.

Terminada a luta com dezenas de mortos e com a vitória dos fanáticos, José Maria é enterrado com tábuas para facilitar a sua ressurreição, que aconteceria acompanhado de um Exército Encantado, ou Exército de São Sebastião. Os caboclos defendiam a Monarquia Celeste, pois viam na República um instrumento do diabo, dominado pelas figuras dos coronéis.

Em dezembro de 1913, organiza-se em Taquaruçú um novo reduto que logo reuniu 3000 crentes, que atenderam ao chamado de Teodora, uma antiga seguidora de José Maria que dizia ter visões do monge. Ao final deste ano, o governo federal e uma Força Pública catarinense, atacam o reduto. O ataque fracassa e os fanáticos se apoderam das armas. A partir de então começam a surgir novos redutos, cada vez mais em locais afastados para dificultar o ataque das tropas legais.

Em janeiro de 1914 um novo ataque é feito em conjunto com os dois Estados e o governo federal que arrasa completamente o acampamento de Taquaruçú. Mas a maior parte dos habitantes já estava em Caraguatá, de difícil acesso. No dia 9 de março de 1914 os soldados travam uma nova batalha, sendo derrotados. Essa derrota repercute em todo o interior, trazendo para o reduto mais e mais pessoas. Neste momento, formam-se piquetes para o arrebanhamento de animais da região para suprir as necessidades do reduto.

Mesmo com a vitória é criado outro reduto, o de Bom Sossego, e perto dele o de São Sebastião. Este último chegou a ter aproximadamente 2000 moradores. Os fanáticos não ficam só a esperar os ataques do governo, atacam as fazendas dos coronéis retirando tudo o que precisavam para as necessidades do reduto. Partiram também para atacar várias cidades, como foi o caso de Curitibanos. O principal alvo nesses casos eram cartórios onde se encontravam registros das terras, sendo incendiados. Outro ataque foi em Calmon, contra a segunda serraria da Lumber, destruindo-a completamente.

No auge do movimento, o território ocupado equivalia ao Estado de Alagoas, totalizando 20.000 km2. Até o fim do movimento haviam morrido cerca de 6000 caboclos. (Algumas fontes afirmam terem sido mais de 20.000 o número de mortos N. A.)

O contra-ataque do governo

Com a nomeação do General Setembrino de Carvalho para o comando das operações contra os fanáticos, a guerra muda de posição. Até então os rebeldes haviam ganho grande parte dos combates e as vitórias do governo eram inexpressivas. Setembrino vai reunir 7000 soldados, dispondo também de dois aviões de observação e combate.

Em seguida manda um manifesto aos habitantes das áreas ocupadas garantindo a devolução de terras para quem se entregasse, e tratamento inóspito para quem continuasse. Setembrino vai adotar uma nova postura de guerra, ao invés de ir ao combate direto, cerca os fanáticos com tropas vindas de todas as direções: norte – sul – leste – oeste.

Com esse cerco, começa a faltar comida nos acampamentos, fazendo com que alguns fanáticos começassem a se entregar, mas na sua maioria eram velhos, mulheres e crianças, talvez para que sobrasse mais comida aos combatentes. Começa a se destacar do reduto a figura do Adeodato, o último líder dos fanáticos, que muda o reduto-mor para o vale de Santa Maria, que contou com cerca de 5000 homens.

Na medida em que ia faltando comida, Adeodato começa a se revelar autoritário, não aceitando ser desafiado. Aos que queriam desertar, ou se entregar, era aplicada a pena máxima: a morte.
Em dezembro de 1915 o último reduto é devastado pelas tropas de Setembrino. Adeodato foge, vagando com tropas ao seu encalço, conseguindo escapar de seus perseguidores, mas a fome e o cansaço fazem com que Adeodato se entregue em início de agosto de 1916.

Em 1923, sete anos após ter sido preso, Adeodato é morto numa tentativa de fuga pelo próprio diretor da cadeia. Chegava ao fim a trajetória do último comandante dos fanáticos da região do Contestado.



Fotos: 1: Bandeira dos revoltosos - 2: Região do conflito - 3: Monge José Maria - 4: Construção da Estrada de Ferro - 5: Grupo de caboclos.


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domingo, 22 de novembro de 2009

O Caminho da Felicidade

O HÁBITO SAUDÁVEL DA LEITURA

O CAMINHO DA FELICIDADE

ILAN BRENMAN
LIVRO: AS 14 PEROLAS DA ÍNDIA
EDITORA BRINQUE-BOOK


O deus criador Brahma estava sozinho no universo quando teve a idéia de modelar alguns seres para lhe fazer companhia. Assim que ficaram prontos, os homens encontraram a chave da felicidade e com ela voltaram a fundir-se ao corpo do criador. Novamente Brahma estava sozinho.

O Ser Supremo resolveu tentar mais uma vez: modelou mais homens, mas dessa vez, antes de lhes dar vida, refletiu sobre a chave da felicidade.

- È melhor eu esconder a chave que os traz até mim, porque senão ficarei novamente sozinho.


Brahma começou a pensar no local em que esconderia a chave da felicidade:

- Já sei, jogarei a chave nas profundezas do oceano Índico. Depois de um tempo, refletiu melhor e disse:

- Não, no futuro, com certeza os homens chegarão às profundezas de todos os oceanos. Já sei, eu a colocarei nas cavernas do Himalaia. Mas também não é boa idéia, pois no futuro os homens explorarão todas as cavernas do mundo e a encontrarão.

Depois de refletir mais um pouco, Brahma disse:

- Sim, este lugar é excelente – pensou ele. Esconderei a chave da felicidade num dos planetas do nosso universo.

Depois de um tempo, o entusiasmo do Deus Supremo esvaiu-se.

- No futuro os homens viajarão por todas as galáxias, e com certeza encontrarão a chave da felicidade.

Brahma ficou semanas diante de suas criações de barro. Ele não lhes daria vida até descobrir um lugar apropriado para ocultar a chave.

Numa manhã crepuscular, o Deus Supremo olhou para a fileira de homens de barro e finalmente descobriu o local apropriado para esconder a chave da felicidade.

- È isso! – gritou Brahma. – Os homens nunca vão pensar em procurar a chave no lugar em que estou pensando escondê-la.

Brahma aproximou-se das suas criaturas, pegou milhares, milhões, bilhões de partículas da chave da felicidade e as escondeu no melhor lugar do mundo: DENTRO DO PRÓPRIO HOMEM.

Disse o sábio:
_ Aquele que mergulha para dentro encontra o caminho que leva ao Ser Supremo.

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domingo, 15 de novembro de 2009

Vida Iluminada e "aquilo"...




A Internet nos possibilita uma interação e fontes de conhecimento inimagináveis há alguns anos.



Quando o "Letras da Torre" nasceu não tinha como objetivo (como ainda não tem) nada mais que lançar um "olhar crítico, poético, eqüidistante ou engajado, sobre transeuntes, fatos e mundos". (A manutenção do trema é proposital).


No que tange ao engajamento, a Torre procurou abraçar algumas causas. Sem buscar a polêmica desnecessária, desgastante e na maioria das vezes estéreis, não deixou de se posicionar, sempre com o devido respeito ao contraditório.


É nesse contexto que acolheu a grande amiga e colaboradora Krika, pelo seu trabalho de resgate e estímulo à leitura desenvolvido no interior de Minas Gerais. Seu projeto ganhou corpo e visibilidade. Não que a Torre tenha algo a ver com isso, mas pelos seus méritos e dedicação. É dela a colaboração final da postagem de hoje. "Aquilo" foi ela quem enviou. Krika hoje fala ou melhor, escreve sobre seu projeto e trabalho no site "Linguagem e Afins" sem deixar de colaborar com a Torre e com o "Projetos e Idéias", seu blog inicial que criaram juntamente com a Géssica, outra educadora comprometida.


Hoje, no entanto, quero falar de outro exemplo de dedicação, carinho e amor ao próximo.


Trata-se do Coral Vida Iluminada, formado por deficientes visuais em Mogi Mirim, cidade do interior de São Paulo.


A querida amiga Neuza, a Girinha de tantas trocas e intercâmbios, passou a fazer parte dele. Penso que ela aliou o seu amor ao canto, que já desenvolvia em outro coral, infelizmente extinto por falta de apoio, à sua dedicação ao próximo consubstanciado em seu envolvimento com as casas lar, que acolhem idosos.


É um exemplo de vida e superação este coral. Mesmo para mim, um sujeito já bastante rebenquiado (para usar um termo gaúcho) pela vida, não tenho como não me sentir tocado pelo canto e pela visão (parece contraditório) de esperança e fé demonstrado pelos membros do coral.


O coral leva seu canto e mensagem de vida à hospitais, creches, casa de idosos e outros tantos que os queiram ouvir.


Para conhecer mais, acessem o site: http://amuvidailuminada.blogspot.com/


Trancrevo um pequeno trecho do site:


"Surgiu em agosto de 2005 com o objetivo da inclusão social dos deficientes visuis através da música. Apresentando-se em hospitais, asilos, eventos beneficentes, tem como objetivo, cantar para fazer o bem! Onde através do SOM DO CORAÇÃO, os cantores transmitem diretamente as emoções ao público, intensificando o contato com a platéia."


Vida longa, amigos. Obrigado por renovarem a minha esperança num Brasil possível, num mundo possível.




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Aquilo



Quando aquilo apareceu na cidade, teve gente que levou um susto.
Teve gente que caiu na risada.
Teve gente que tremeu de medo.
E gente que achou uma delícia.
E gente arrancando os cabelos.
E gente soltando rojões.
E gente mordendo a língua, perdendo o sono, gritando viva, roendo as unhas, batendo palma, fugindo apavorada e ainda gente ficando muito, muito, muito feliz.
Uns tinham certeza de que aquilo não podia ser de jeito nenhum.
Outros também tinham certeza.
Disseram: - Viva! Que bom! Até que enfim!
Muitos ficaram preocupados.
Exigiram que aquilo fosse proibido.
Garantiram que aquilo era impossível.
Que aquilo era errado. Que aquilo podia ser muito perigoso.
Outros, tranqüilos, festejaram, deram risada, comemoraram e, abraçados, saíram pelas ruas, cantando e dançando felizes da vida.
Alguns, inconformados, resolveram perseguir aquilo. Disseram que aquilo não valia nada. Disseram que era preciso acabar logo com aquilo ou, pelo menos, pegar e mandar aquilo para bem longe.
Muitos defenderam e elogiaram aquilo. Juraram que aquilo era bom. Que aquilo ia ser melhor
para todos. Que esperavam aquilo faz tempo.
Que aquilo era importante, bonito e precioso.
Alguém decidiu acabar com aquilo de qualquer jeito.
Mas outro alguém disse não! E foi correndo esconder aquilo devagarinho no fundo do coração.

Caro leitor: aquilo pode ser muitas coisas.
Se sentir vontade, pegue um lápis e uma folha de papel e escreva sobre aquilo: diga, em sua opinião e em seu sentimento, o que é aquilo, como é aquilo, o que aquilo faz, de onde aquilo veio, para onde aquilo vai e que sentido, afinal, aquilo tem. Se quiser, desenhe aquilo também.

Conto de Ricardo Azevedo, extraído do livro Se Eu Fosse Aquilo...· (publicado pela Editora Ática), ilustrado por Mauro Nakata

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domingo, 8 de novembro de 2009

O Negro Bonifácio


(À querida amiga Lu, que gosta do sotaque e dos causos.)

Se o negro era maleva? Cruz! Era um condenado!... mas, taura, isso era, também!
Quando houve a carreira grande, do picaço do major Terêncio e o tordilho do Nadico (filho do Antunes gordo, um que era rengo), quando houve a carreira, digo, foi que o negro mostrou mesmo pra o que prestava...; mas foi caipora.

Escuite.

A Tudinha era a chinoca mais candongueira que havia por aqueles pagos. Um cajetilha da cidade duma vez que a viu botou-lhe uns versos mui lindos - pro caso - que tinha um que dizia que ela era uma chinoca airosa lindaça como o sol, fresca como uma rosa!...

E o sujeito quis retouçar, porém ela negou-lhe o estribo, porque já trazia mais de quatro pelo beiço, que eram dali, da querência, e aquele tal dos versos era teatino...

Alta e delgada, parecia assim um jerivá ainda novinho, quando balança a copa verde tocada de leve por um vento pouco, da tarde. Tinha os pés pequenos e as mãos mui bem torneadas; cabelo cacheado, as sobrancelhas finas, nariz alinhado.

Mas o rebenqueador, o rebenqueador..., eram os olhos!...

Os olhos da Tudinha eram assim a modo olhos de veado-virá, assustado: pretos, grandes, com luz dentro, tímidos e ao mesmo tempo haraganos... pareciam olhos que estavam sempre ouvindo.., ouvindo mais, que vendo...

Face cor de pêssego maduro; os dentes brancos e lustrosos como dente de cachorro novo; e os lábios da morocha deviam ser macios como treval, doces como mirim, frescos como polpa de guabiju...

E apesar de arisca, era foliona e embuçalava um cristão, pelo só falar, tão cativo...

No mais, buenaça, sem entono; e tinha de que, porque corria à boca pequena que ela era filha do capitão Pereirinha, estancieiro, que só ali, nos Guarás, tinha mais de não sei quantas léguas de campo de lei, povoado, O certo é que o posto em que ela morava com a mãe, a sia Fermina, era um mimo; tinha de um tudo: lavoura, boa cacimba, um rodeíto manso; e a Tudinha tinha cavalo amilhado, só do andar dela, e alguma prata nos preparos.

Parecenças, isso, tinha, e não pouco, com a gente do capitão...

O velho, às vezes, ia por lá, sestear, tomar um chimarrão...

Pois para a carreira essa, tinha acudido um povaréu imenso.

E ela veio, também, com a velha. Velha, é um dizer, porque a sia Fermina ainda fazia um fachadão...

E deu o caso que os quatro embeiçados também vieram, e um, o mais de todos, era o Nadico.

E sem ninguém esperar, também apareceu o negro Bonifácio.

É assim que o diabo as arma...

Escuite.

O negro não vinha por ela, não; antes mais por farrear, jogar e beber: ele era um perdidaço pela cachaça e pelo truco e pela taba.

E bem montado, vinha, num bagual lobuno rabicano, de machinhos altos, peito de pomba e orelhas finas, de tesoura; mui bem tosado a meio cogotilho, e de cola atada, em três tranças, bem alto, onde canta o galo!...

E na garupa, mui refestelada, trazia uma chirua, com ar de querendona...

Eta! negro pachola!

De chapéu de aba larga, botado no cocuruto da cabeça e preso num barbicacho de borlas morrudas, passado pelo nariz; no pescoço um lenço colorado, com o nó republicano; na cintura um tirador de couro de lontra debruado de tafetá azul e mais cheio de cortados do que manchas tem um boi salino!
E na cintura, atravessado com entono, um facão de três palmos, de conta.

Na pabulagem, andava sozinho: quando falava, era alto e grosso e sem olhar para ninguém.

Era um governo, o negro!

Ora bem; depois de se mostrar um pouco, o negro apeou a chirua e já meio entropigaitado começou a pastorejar a Tudinha... e tirando-se dos seus cuidados encostou o cavalo rente no dela e aí no mais, sem um - Deus te salve! -sacudiu-lhe um envite para uma paradita na carreira grande. A piguancha relanceou os seus olhos de veado assustado e não se deu por achada; ele repetiu o convite da aposta e ela então - depois explicou - de puro medo aceitou, devendo ganhar uma libra de doces, se ganhasse o tordilho. O tordilho era o do Nadico.

Ficou fechado o trato.

O negro - era ginetaço! - deu de rédea no lobuno, que virou direito, nos dois pés, e já lhe cravou as chilenas, grandes como um pires, e saiu escaramuçando, meio ladeado!
Os quatro brancos se olharam… o Nadico estava esverdeado, como defunto passado...

A Tudinha pegou logo a caturritar, e a cousa foi passando, como esquecida.

Mas, quê!... o negro estava jurado...

Escuite.

Entraram na cancha os parelheiros, todos dois pisando na ponta do casco, mui bem compostos e lindos, de se lavar com um bochecho d'água.

Fizeram as partidas; largaram; correram: ganhou, de fiador, o do Nadico, o tordilho.

Depois rompeu um vozerio, a gente desparramou-se, parecia um formigueiro desmanchado; as parcerias se juntaram, uns pagavam, outros questionavam.... mas tudo se foi arreglando em ordem, porque ninguém foi capaz de apontar mau jogo.

E foi-se tomar um vinho que os donos da carreira ofereceram, como gaúchos de alma grande, principalmente o major Terêncio, que era o perdedor.

E a Tudinha lá foi, de charola.

No barulho das saúdes e das caçoadas, quando todos se divertiam, foi que apareceu aquele negro excomungado, para aguar o pagode. Esbarrou o cavalo na frente do boliche; trazia na mão um lenço de sequilhos, que estendeu a Tudinha: havia perdido, pagava...

A morocha parou em meio um riso que estava rindo e firmou nele uns olhos atravessados, esquisitos, olhos como pra gente que já os conhecesse.., e como sentiu que o caso estava malparado, para evitar o desaguisado, disse:

- Faz favor de entregar à mamãe, sim?!...

O negro arreganhou os beiços, mostrando as canjicas, num pouco caso e repostou:- Ora, misturada!..., eu sou teu negro, de cambão!... mas não piá da china velha! Toma! E estendeu-lhe o braço, oferecendo o atado dos doces.

Aqui, o Nadico manoteou e no soflagrante sopesou a trouxinha e sampou com ela na cara do muçum.

Amigo! Virge' nossa senhora!

Num pensamento o negro boleou a perna, descascou o facão e se veio!...

O lobuno refugou, bufando.

Que peleia mais linda!

Vinte ferros faiscaram; era o Nadico, eram os outros namorados da Tudinha e eram outros que tinham contas a ajustar com aquele tição atrevido.

Perto do negro Bonifácio, sentado sobre um barril, sem ter nada que ver no angu, estava um paisano tocando viola: o negro - pra fazer boca, o malvado! - largou-lhe um revés, tão bem puxado, que atorou os dedos do coitado e o encordoamento e afundou o tampo do estrumento!...

Fechou o salseiro.

O Nadico mandou a adaga e atravessou a pelanca do pescoço do negro, roçando na veia artéria; o major tocou-lhe fogo, de pistola, indo a bala, de refilão, lanhar-lhe uma perna.., o ventana quadrava o corpo, e rebatia os talhos e pontaços que lhe meneavam sem pena.

E calado, estava; só se via no carão preto o branco dos olhos, fuzilando...

Ai!...

Foi um grito doido da Tudinha... e já se viu o Nadico testavilhar e cair, aberto na barriga, com a buchada de fora, golfando sangue!...

No meio do silêncio que se fez, o negro ainda gritou:- Come agora os meus sobejos!…Depois, roncou, tal e qual como um porco acuado... e então, foi uma cousa bárbara!...

Em quatro paletadas, desmunhecando uns, cortando outros, esgaravatando outros, enquanto o diabo esfrega o olho, o chão ficou estivado de gente estropiada, espirrando a sangueira naquele reduto.

É verdade também que ele estava todo esfuracado: a cara, os braços, a camisa, o tirador, as pernas, tinham mais lanhos que a picanha de um reiúno empacador: mas não quebrava o corincho, o trabuzana! Aquilo seria por obra dalguma oração forte, que ele tinha, cosida no corpo.

A esse tempo, era tudo um alarido pelo acampamento; de todos os lados chovia gente no lugar da briga.

A Tudinha, agarrada ao Nadico, com a cabeça pousando-lhe no colo, beijando-lhe ela os olhos embaciados e a boca já morrente, ali, naquela hora braba, à vista de todo o mundo e dos outros seus namorados, que se esvaíam, sem um consolo nem das suas mãos nem das suas lágrimas, a Tudinha mostrava mesmo que o seu camote preferido era aquele, que primeiro desfeiteou e cortou o negro, por causa dela...

Foi então que um gaúcho gadelhudo, mui alto, canhoto, desprendeu da cintura as boleadeiras e fê-las roncar por cima da cabeça… e quando ia a soltá-las, zunindo, com força pra rebentar as costelas dum boi manso, e que o negro estava cocando o tiro, de facão pronto pra cortar as sogas... nesse mesmo momento e instante a velha Fermina entrou na roda, e ligeira como um gato, varejou no Bonifácio uma chocolateira de água fervendo, que trazia na mão, do chimarrão que estava chupando...

O negro urrou como um touro na capa...; a rumo no mais avançou o braço, e fincou e suspendeu, levantou a velha, estorcendo-se, atravessada no facão até o esse...; ao mesmo tempo, mandado por pulso de homem um bolaço cantou-lhe no tampo da cabeça e logo outro, no costilhar, e o negro caiu, como boi desnucado, de boca aberta, a língua pontuda, mexendo em tremura uma perna, onde a roseta da chilena unia, miúdo...

Patrício, escuite!

Vi então o que é uma mulher rabiosa...: não há maneia nem buçal que sujeite: é pior que homem!...

A Tudinha já não chorava, não; entre o Nadico, morto, e a velha Fermina estrebuchando, a morocha mais linda que tenho visto, saltou em cima do Bonifácio, tirou-lhe da mão sem força o facão e vazou os olhos do negro, retalhou-lhe a cara, de ponta e de corte... e por fim, espumando e rindo-se, desatinada - bonita, sempre! - ajoelhou-se ao lado do corpo e pegando o facão como quem finca uma estaca, tateou no negro sobre a bexiga, pra baixo um pouco - vancê compreende?... - e uma, duas, dez, vinte, cinqüenta vezes cravou o ferro afiado, como quem espicaça uma cruzeira numa toca... como quem quer estraçalhar uma causa nojenta... como quem quer reduzir a miangos uma prenda que foi querida e na hora é odiada!...

Em roda, a gauchada mirava, de sobrancelhas rugadas, porém quieta: ninguém apadrinhou o defunto.

Nisto um sujeito que vinha a meia rédea sofrenou o cavalo quase em cima da gente: era o juiz de paz.

Mais tarde vim a saber que o negro Bonifácio fora o primeiro a... a amanonsiar a Tudinha; que ao depois tomara novos amores com outra fulana, uma piguancha de cara chata, beiçuda; e que naquele dia, para se mostrar, trouxera na garupa a novata, às carreiras, só de pirraça, para encanzinar, para tourear a Tudinha, que bem viu, e que apesar dos arrastados de asa daquela moçada e sobretudo do Nadico, que já a convidara para se acolherar com ele, sentira-se picada, agoniada da desfeita que só ela e o negro entendiam bem...; por isso é que ela ficou como cobra que perdeu o veneno...

Escuite.

Até hoje me intriga, isto: como uma morena, tão linda, entregou-se a um negro, tão feio?...

Seria de medo, por ele ser mau?... Seria por bobice de inocente?... Por ele ser forçudo e ela, franzina?... Seria por...

Que, de qualquer forma, ela vingou-se, isso, vingou-se...; mas o resto que ela fez no corpo do negro? Foi como um perdão pedido ao Nadico ou um despique tomado da outra, da piguancha beiçuda?...

Ah! mulheres!...

Estancieiras ou peonas, é tudo a mesma cousa... tudo é bicho caborteiro...; a mais santinha tem mais malícia que um sorro velho!...
De João Simões Lopes Neto em Contos Gauchescos
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domingo, 1 de novembro de 2009

“Siá” Olímpia

Siá Olímpia era uma mulher misteriosa.

Talvez menos para nossos pais, já mais vividos e conhecedores do mundo, mas para nós, pirralhos, cujo mundo se limitava ao café da manhã com ovo frito, revirado de feijão e um dia inteiro de muito mato pela frente.

Encontrar amoras maduras, guabirobas, era a nossa missão. Empanturráva-mos de frutas, mas sempre guardáva-mos a maior e mais bonita para levar para a mãe.

Siá Olímpia chegava sem avisar, vinda não se sabe de onde. Simplesmente chegava e se estabelecia.

Miúda, carregava pouco. Um ou dois sacos surrados com poucos pertences dentro; uma muda de roupa invariavelmente preta como a que vestia e ervas colhidas no caminho para fazer chá para qualquer cura, desde lombrigas a mau olhado.

De fala mansa, com leve sotaque lusitano, junto com as ervas para os chás, trazia rezas e benzas. Dizia ter aprendido com um tal de “Jujo Idéia!”.

(Um parêntese: já agora, conversando com um casal de idosos do lado catarinense do rio Uruguai, numa pesquisa de campo para a história dos balseiros, ouvi novamente referência à Jujo Idéia. Não consigo ainda entender bem, pois há uma mistura nos relatos simples, de fatos históricos que envolvem Jesus Cristo, Dom Sebastião e o Espírito Santo, e João (ou José) Maria, líder dos caboclos pobres na guerra do Contestado).

Voltemos ao relato...

Siá Olímpia falava de João Maria e Jujo Idéia como se reverenciasse um santo. (Seria ele o mesmo da guerra do Contestado?).

Ela ficava dias lá em casa. Às vezes meses. Ajudava a mãe nas fainas domésticas, buscava água, escolhia feijão, lavava roupas... e depois se ia, tão misteriosamente quanto chegara.

Quando o pai comprou um rádio, um dos primeiros da região, (Scala... do tamanho de uma vitrola que vocês, os mais antigos, conhecem) a família e alguns vizinhos se reuniam na noite de domingo, para ouvir o “Grande Rodeio Coringa” transmitido pela Rádio Farroupilha, de Porto Alegre.

Depois desse programa tinha uma novela radiofônica.

Os vizinhos penetras eram incentivados a irem embora por causa da roça no mato, e nós, pequenos, com chineladas a ir para a cama.

Ficavam lá os adultos, pai, mãe e Siá Olímpia a escutar a rádio-novela. Mas o cansaço e o sono abatiam Siá Olímpia ainda no meio do enredo. A mãe então a acordava e a levava para a cama.

No dia seguinte, curiosa, ela perguntava sobre as duas únicas possibilidades de final da novela:

- Casou ou morreu?...
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Sonhei com Siá Olímpia esta noite.
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Numa tarde, já distante no tempo, um tio, o João Pinto, ao passar por uma estrada poeirenta, encontrou-a morta encostada ao barranco.

Tinha ao seu lado o saco de ervas e vestia a roupa preta de sempre. Mortalha que carregara em vida.
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