domingo, 30 de agosto de 2009

Figueiredo



Minha natural curiosidade me fez, a certa altura da vida, buscar a origem de alguns sobrenomes de família.

Foi quando me deparei com esta bonita história.




FIGUEIREDO DAS DONAS

Figueiredo, do antigo português, é sinônimo de figueiral, e designa lugar onde existem muitas figueiras. (Antenor Nascentes, II, 112). Como laranjal, bananal.

Sua origem como sobrenomes está ligada a uma lenda, ocorrida por volta do ano 783, pela qual consta que os mouros, de cultura muçulmana, invadiram a Península Ibérica, onde hoje se localiza Portugal e Espanha, e dominaram toda a região. Como tributo de conquista, o Kalifa, rei de Córdova (Espanha), passou a exigir do vencido Mauregato, Rei de Leão, um tributo de 100 donzelas anuais. Inconformados com essa absurda exigência por terem formação cristã, os fidalgos e o próprio povo ibérico ofereciam resistência toda vez que os mouros passavam para cobrar as mulheres, mas sempre eram vencidos.

Numa dessas ocasiões, os mouros conduziam seis donzelas para o kalifa e, quando passavam por um Figueiredo (ou figueiral) localizado próximo a Viseu, o fidalgo Goesto Ansur, que se encontrava por ali caçando, investiu contra os muçulmanos e, depois de esgotada a munição, armou-se com um pesado galho de figueira, vencendo-os e restituindo as mulheres à liberdade.

Depois de expulsos os árabes da penínsulas como homenagem por aquele ato de bravura, o fidalgo foi agraciado com o sobrenome de FIGUEIREDO com direito a Brasão de Armas.

Também a localidade onde o fato aconteceu passou a chamar-se Figueiredo das Donas, nome que permanece ainda hoje, localizada na comarca de Viseu, em Portugal. Por extensão, todos os moradores daquela localidade passaram a assinar-se “de Figueiredo” que significava “procedente ou originário de”. Assim, além daquele conferido a Goesto Ansur, o sobrenome Figueiredo passou a ter significado geográfico, alcançado a todos os habitantes daquela localidade.

Embora a partir daquele ato todos os seus familiares passassem a utilizar o sobrenome, a genealogia dessa família só é encontrada pela primeira vez com o quinto neto deste Ansur, de nome Soeiro Martins de Figueiredo, conforme registros datados de 1211 e 1245, ao tempo dos reis de portugal, D. Afonso II e D.Afonso III.

Depois, encontramos na história do Brasil, o nome de Jorge Figueiredo Correia, escrivão da fazenda real, que, em 1535, foi donatário da capitania de Ilhéus, localizada entre a Capitania da Bahia e a de Porto Seguro.

A família à qual pertencia o donatário Jorge de Figueiredo Correia era chamada, em Portugal, de “a dos escrivães da fazenda”, já que três de seus membros desempenham aquele cargo: Henrique de Figueiredo, seu Bisavô, foi escrivão da Fazenda do rei Afonso V e de D. João II. Enquanto Rui de Figueiredo, avô de Jorge, desempenhou a mesma função no reinado de D. Manoel.

Jorge de Figueiredo nunca veio ao Brasil. Administrou sua capitania através de terceiros. Casou-se com D. Catarina de Alarcão, e um filho deste casal, Jerônimo Alarcão de Figueiredo, foi pagem de D. João III, o que evidencia a intimidade daquela família com a corte portuguesa.

O primeiro Figueiredo de que se tem notícia que efetivamente desembarcou no Brasil, foi Lourenço de Figueiredo, “fidalgo nos livros d'El Rei”, condenado a degredo na Bahia por haver assassinado um cônego, seu parente. Lourenço aqui chegou em fins do ano de 1536, trazido pelo donatário Francisco Pereira Coutinho, na companhia de seu filho de 12 anos, Jorge Figueiredo Mascarenhas que mais tarde casou-se com Apolônia Álvares, filha do lendário Diogo Álvares Correia , o Caramuru.

A partir de então, por ser sobrenome muito comum, tanto em Portugal como na Espanha, muitos Figueiredos vieram para o Brasil e aqui se estabeleceram.

Texto extraído do ESTUDO DA ÁRVORE GENEALÓGICA DA FAMILIA FIGUEIREDO. Autor: GERALDO FIGUEIREDO

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Tendo salvo as donzelas, D. Guestu desposou uma delas, Orélia no seu paço e para ela compôs o seguinte poema de amor, que é, aparentemente, a mais antiga poesia escrita em língua portuguesa:

Trovas de D. Guestu Ansur

"No figueiral figueiredo
a no figueiral entrey,
seis ninas encontrara
seis ninas encontrey,
para ellas andara
para ellas andey,
lhorando as achara
lhorando as achey,
logo lhes pescudara
logo lhes pescudey,
quem las maltratara
y a tão mala ley.
No figueiral figueiredo
a no figueiral entrei,
Vma repricara
infançon nom sey
mal ouuesse la terra
que tene o mal Rey
seu las armas vsara
y a mim sse nom sey.
Se hombre a mim leuara
de tão mala ley,
A Deos vos vayades
Garçom ca nom sey
se onde me falades
mais vos falarei
No figueiral figueiredo
a no figueiral entrei.
Eu lhe repricara
amim sse nom irey,
ca olhos dessa cara
caros los comprarei,
a las longas terras
entras vos me irey,
las compridas vias
eu las andarei,
lingoa de arauias
eu las falarei.
Mouros se me vissem
eu los matarei.
No figueiral figueiredo
a no figueiral entrey.
Mouro que las goarda
cerca lo achei,
mal la ameaçara
eu mal me anogei,
troncom desgalhara
troncom desgalhei,
todolos machucara
todolos machuquei,
las ninas furtara
las ninas furtei,
la que a mim falara
nalma la chantei.
No figueiral figueiredo
a no figueiral entrei"


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Figueiredo das Donas situa-se a cerca de 6 Km de Vouzela, Distrito de Viseu, e a cerca de 10 Km de São Pedro do Sul, pelo que a principal via de acesso é o IP5. A freguesia é, também atravessada pela Estrada Nacional 228.


A freguesia de Figueiredo das Donas situa-se no extremo norte do Concelho, com uma altitude média de 350m. Apresenta uma superfície de 4,3 Km2 representando a freguesia mais pequena do concelho, com apenas 2% do território total do concelhio. Tem por limites, a Nascente, a freguesia de S. Miguel do Mato, a poente, a de Fataunços, a sul, a de Queirã e, a norte, a de S. Pedro do Sul. Envolvida pelos rios Trouce e Ribamá que passam a norte e a poente, é constituída pelos aglomerados populacionais de Figueiredo das Donas, Real das Donas, Ervedal, Monsanto, Queijão e Fermil.






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domingo, 23 de agosto de 2009

Escrever e Viver

O Hábito Saudável da Leitura

Navegando por aí, encontrei este lindo depoimento ,que repasso a vocês:
http://www.geocities.com/ceturho/sd1.htm


ESCREVER E VIVER

A revista "FAZENDO ESCOLA", publicada pela Secretaria Municipal de Cultura de Uberaba, Ano 3, no 6, a belíssima carta enviada por Bartolomeu Campos Queirós, conhecido autor de livros infantis a Vânia Resende. O conteúdo da missiva mostra bem a todos nós o que é escrever, em termos de vida e arte. Por isto, a mesma será transcrita na íntegra no presente trabalho, como ponto de partida das reflexões que se colocam para o professor de língua materna, no dia de hoje:


Belo Horizonte, 14.07.96


Vânia, amiga minha,


Por muitas vezes tenho afirmado que as palavras são portas e janelas. Se me debruço e olho, inscrevo-me na paisagem. Se destranco as portas o enredo do mundo me visita. Vivo, hoje, desse privilégio de me estar somando ao mundo pela leitura e de me estar dividindo pela escrita. Escrever é arriscar-se, ao tentar adivinhar o obscuro, enquanto ler é iluminar-se com a claridade do já decifrado.


O gesto definitivo da escola sobre a minha vida foi o de não me ter afastado do prazer de ler e escrever. Minha professora, livro às mãos, encerrava as aulas remetendo-nos a outras geografias, novas histórias, belas linguagens. Sem receio do tempo e segura quanto às funções da literatura, ela exercia o magistério descontextualizando-nos, oferecendo-nos caminhos alternativos para outras viagens, não deixando morrer a nossa curiosidade infantil, fazendo nascer em nós, mais e mais desejos.


Desse momento em diante, jamais estive em irremediável solidão. Há sempre ao meu lado, um livro sem nenhuma força inibidor, sem exigência ou cobrança, surpreendendo-me com o ainda insuspeitado. E pode a educação fazer mais pelo homem do que remediar a sua solidão? Nascer é ganhar o abandono, é inaugurar a perda e estar só até o momento da própria morte. Vejo duas sortes de solidão: uma que inibe e outra que desafia. Padecendo da primeira, o homem se vê só, e sem força movedora para encontrar se nas relações; se fecha e sofre. Na segunda, a dor é menor. Mesmo sabendo-se condenado à solidão, o sujeito procura, busca, insiste em estar-com, consciente da impossibilidade da completude.


Não é tarefa simples para a escola, essa de formar leitores. É necessário, antes, ser uma escola leitora, capaz de ler a cultura do mundo para bem selecionar o seu conteúdo curricular. Ela é um apêndice da cultura. Ela só romperá o cotidiano se tomar posse do conhecimento produzido anteriormente. Mas muitos dos seus reponsáveis consideram a cultura como matéria de um programa, como se isso fosse possível ou inteligente. Tal atitude evidencia a sua pouca capacidade de ler. Suspeito, minha amiga Vânia, que assim sendo a nossa cidadania será sempre cega, exercitada, comprometida com o modismo e não movida por uma força advinda do reconhecimento, pelo homem, de sua própria dignidade. A escola usa a leitura apenas com a perspectiva de somar "saber". E ler pelo prazer de ler possibilita-nos o saber como acréscimo e a felicidade como objetivo.


Vânia, o mundo é um imenso livro sem texto; ou melhor, um intenso texto. Leituras e escritas são, pois, atividades inerentes ao homem. Fascinante é ainda certificar se de que esse livro foi criado a partir da Palavra. Foi dizendo faça-se a luz, façam-se as águas, faça-se o firmamento, que tudo se fez. A palavra, de fato, realiza aquilo que prenuncia. A escola; sempre, impede o aluno de escrever a sua legenda sob esse livro, como seleciona as legendas que devem ser lidas, de acordo com a sua conveniência. (Não acredito em escola de conveniência ou de busca do equilíbrio. Ser educado é existir no plural. É apreender que tudo tem vários prumos, inúmeros pontos de vista. múltiplos significantes e muitos tantos valores. É suspeitar que dois mais dois só são quatro quando a sociedade é justa). A escola é servil e está sempre a serviço de determinados caprichos. Daí a liberdade ser considerada, por ela como um privilégio que ela outorga e não como uma exposição incondicional para se educar. Ser educado é praticar a liberdade com o refinamento próprio daqueles que descobriram os limites da humanidade. Não se é livre sem cuidados. E a leitura, dentro de seus propósitos maiores, só é possível na liberdade. Todo meu interesse está em afirmar que não há cidadão sem leitura.


Sou escritor, como você bem sabe, e muito lhe agradeço o carinho e rigor com que você vem reconhecendo a minha obra. Falo, pois, como aquele que busca ler o mundo e registrá-lo na tentativa de dividir a minha perplexidade diante do que a vida humana pode vir a ser. Se uso da fantasia sei que fantasiar é deixar vir à tona o que há de mais próximo da minha intimidade. Fantasiar é confidenciar, é refutar a mentira, é o falar com a mais provisória das verdades. Octávio Paz diz que "quem coloca convicções próprias como serrado a verdade absoluta e as instrumentaliza politicamente, torna impossível a convivência livre das pessoas". Neste sentido, a presença da literatura se justifica só por si. Ao só existir permitindo que o leitor preencha o silêncio entre as palavras com a história pessoal, ela é definitivamente democrática. Daí a importância de se formar uma rede nacional de leitura.


Minha amiga, tenho lido nesses dias um trabalho de Françoise Doito chamado "Tout est Langagage". Falando a educadores, ela confirma que para construir e humanizar a sociedade é fundamental cultivar as diferenças. Ela conta um fato simples que bem pode resumir esta carta: "Quando uma criança deseja um brinquedo que não existe, ela o inventa. Um pedaço de qualquer coisa é o seu avião. Mas se lhe dermos um avião, ela vai rapidamente quebrá-lo, pois ela não terá nada a imaginar".


A literatura deixa espaço para o leitor imaginar e apropriar-se dele com as suas vivências, seus sonhos. Ela acorda, no sujeito, dizeres insuspeitados e redimensiona conceitos. É um jogo de invenções e possibilidades. É maior e mais rico dizer que a terra não tem "nem" luz própria de que anunciar apenas que a terra não tem luz própria. Na primeira oração, somos impulsionados a dizer de outras faltas sem negar a afirmativa científica. Não há, pois, educação permanente sem a formação de leitores.


É urgente reconhecer a existência de outros desenvolvimentos além dos tecnológicos, nos últimos tempos. As formulações sobre o homem, seu destino, seu desejo, suas frustrações e fraquezas evoluíram paralelamente. É perigoso muitas vezes, considerar eficaz um processo educativo
quando apenas comprometido com o sucesso financeiro. Conheço, Vânia, um número incalculável de indivíduos que se empobrecem ao enriquecer. Perderam a sensibilidade, o respeito, a afetividade, a generosidade, a humildade; ganharam em arrogância, insolência, soberba, autoritarismo. Seria justo chamar educativo o processo que levasse a tal resultado?

Krika

_________O_________

domingo, 16 de agosto de 2009

O Negrinho do Pastoreio

O NEGRINHO DO PASTOREIO
João Simões Lopes Neto.



NAQUELE TEMPO os campos ainda eram abertos, não havia entre eles nem divisas nem cercas; somente nas volteadas se apanhava a gadaria xucra e os veados e as avestruzes corriam sem empecilhos...
Era uma vez um estancieiro, que tinha uma ponta de surrões cheios de onças e meias-doblas e mais muita prataria; porém era muito cauíla e muito mau, muito.
Não dava pousada a ninguém, não emprestava um cavalo a um andante; no inverno o fogo da sua casa não fazia brasas; as geadas e o minuano podiam entanguir gente, que a sua porta não se abria; no verão a sombra dos seus umbus só abrigava os cachorros; e ninguém de fora bebia água das suas cacimbas.
Mas também quando tinha serviço na estância, ninguém vinha de vontade dar-lhe um ajutório; e a campeirada folheira não gostava de conchavar-se com ele, porque o homem só dava para comer um churrasco de tourito magro, farinha grossa e erva-caúna e nem um naco de fumo… e tudo, debaixo de tanta somiticaria e choradeira, que parecia que era o seu próprio couro que ele estava lonqueando...
Só para três viventes ele olhava nos olhos: era para o filho, menino cargoso como uma mosca, para um baio cabos-negros, que era o seu parelheiro de confiança, e para um escravo, pequeno ainda, muito bonitinho e preto como carvão e a quem todos chamavam somente o - Negrinho.
A este não deram padrinhos nem nome; por isso o Negrinho se dizia afilhado da Virgem, Senhora Nossa, que é a madrinha de quem não a tem.
Todas as madrugadas o Negrinho galopeava o parelheiro baio; depois conduzia os avios do chimarrão e à tarde sofria os maus tratos do menino, que o iudiava e se ria.
***
Um dia depois de muitas negaças, o estancieiro atou carreira com um seu vizinho. Este queria que a parada fosse para os pobres; o outro que não, que não! que a parada devia ser do dono do cavalo que ganhasse. E trataram: o tiro era trinta quadras, a parada, mil onças de ouro.
No dia aprazado, na cancha da carreira havia gente como em festa de santo grande.
Entre os dois parelheiros, a gauchada não sabia se decidir, tão perfeito era e bem lançado cada um dos animais. Do baio era fama que quando corria, corria tanto, que o vento assobiava-lhe nas crinas; tanto, que só se ouvia o barulho, mas não lhe viam as patas baterem no chão... E do mouro era voz que quanto mais cancha, mais agüente e que desde a largada ele ia ser como um laço que se arrebenta...
As parcerias abriram as guaiacas, e aí no mais já se apostavam aperos contra rebanhos e redomões contra lenços.
-Pelo baio! Luz e doble!…
-Pelo mouro! Doble e luz!...
Os corredores fizeram as suas partidas à vontade e depois as obrigadas; e quando foi na última, fizeram ambos a sua senha e se convidaram. E amagando o corpo, de rebenque no ar, largaram, os parelheiros meneando cascos, que parecia uma tormenta...
- Empate! Empate! - gritavam os aficionados ao longo da cancha por onde passava a parelha veloz, compassada como numa colhera.
- Valha-me a Virgem madrinha, Nossa Senhora! - gemia o Negrinho. - Se o sete-léguas perde, o meu senhor me mata! hip! hip! hip!...
E baixava o rebenque, cobrindo a marca do baio.
- Se o corta-vento ganhar é só para os pobres!... retrucava o outro corredor. Hip! hip!
E cerrava as esporas no mouro.
Mas os fletes corriam, compassados como numa colhera, Quando foi na última quadra, o mouro vinha arrematado e o baio vinha aos tirões… mas sempre juntos, sempre emparelhados.
E a duas braças da raia, quase em cima do laço, o baio assentou de supetão, pôs-se em pé e fez uma caravolta, de modo que deu ao mouro tempo mais que preciso para passar, ganhando de luz aberta! E o Negrinho, de em pêlo, agarrou-se como um ginetaço.
- Foi mau jogo! - gritava o estancieiro.
- Mau jogo! - secundavam os outros da sua parceria.
A gauchada estava dividida no julgamento da carreira; mais de um torena coçou o punho da adaga, mais de um desapresilhou a pistola, mais de um virou as esporas para o peito do pé... Mas o juiz, que era um velho do tempo da guerra de Sepé-Tíaraju, era um juiz macanudo, que já tinha visto muito mundo. Abanando a cabeça branca sentenciou, para todos ouvirem:
- Foi na lei! A carreira é de parada morta; perdeu o cavalo baio, ganhou o cavalo mouro, Quem perdeu, que pague. Eu perdi cem gateadas; quem as ganhou venha buscá-las. Foi na lei!
Não havia o que alegar. Despeitado e furioso, o estancieiro pagou a parada, à vista de todos, atirando as mil onças de ouro sobre o poncho do seu contrário, estendido no chão.
E foi um alegrão por aqueles pagos, porque logo o ganhador mandou distribuir tambeiros e leiteiras, côvados de baeta e haguais e deu o resto, de mota, ao pobrerio. Depois as carreiras seguiram com os changueiritos que havia.
***
O estancieiro retirou-se para a sua casa e veio pensando, pensando calado, em todo o caminho. A cara dele vinha lisa, mas o coração vinha corcoveando como touro de banhado laçado a meia espalda… O trompaço das mil onças tinha-lhe arrebentado a alma.
E conforme apeou-se, da mesma vereda mandou amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho.
Na madrugada saiu com ele e quando chegou no alto da coxilha falou assim:
- Trinta quadras tinha a cancha da carreira que tu perdeste: trinta dias ficarás aqui pastoreando a minha tropilha de trinta tordilhos negros... O baio fica de piquete na soga e tu ficarás de estaca!
O Negrinho começou a chorar, enquanto os cavalos iam pastando.
Veio o sol, veio o vento, veio a chuva, veio a noite. O Negrinho, varado de fome e já sem força nas mãos, enleou a soga num pulso e deitou-se encostado a um cupim.
Vieram então as corujas e fizeram roda, voando, paradas no ar, e todas olhavam-no com os olhos reluzentes, amarelos na escuridão. E uma piou e todas piaram, como rindo-se dele, paradas no ar, sem barulho nas asas.
O Negrinho tremia, de medo... porém de repente pensou na sua madrinha Nossa Senhora e sossegou e dormiu.
E dormiu. Era já tarde da noite, iam passando as estrelas; o Cruzeiro apareceu, subiu e passou; passaram as Três-Marias: a estrela-d'alva subiu... Então vieram os guaraxains ladrões e farejaram o Negrinho e cortaram a guasca da soga. O baio sentindo-se solto rufou a galope, e toda a tropilha com ele, escaramuçando no escuro e desguaritando-se nas canhadas.
O tropel acordou o Negrinho; os guaraxains fugiram, dando berros de escárnio,
Os galos estavam cantando, mas nem o céu nem as barras do dia se enxergava: era a cerração que tapava tudo.
E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou.
***
O menino maleva foi lá e veio dizer ao pai que os cavalos não estavam. O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho.
E quando era já noite fechada ordenou-lhe que fosse campear o perdido. Rengueando, chorando e gemendo, o Negrinho pensou na sua madrinha Nossa Senhora e foi ao oratório da casa, tomou o coto de vela acesa em frente da imagem e saiu para o campo.
Por coxilhas e canhadas, na beira dos lagoões, nos paradeiros e nas restingas, por onde o Negrinho ia passando, a vela benta ia pingando cera no chão; e de cada pingo nascia uma nova luz, e já eram tantas que clareavam tudo. O gado ficou deitado, os touros não escarvaram a terra e as manadas xucras não dispararam... Quando os galos estavam cantando, como na véspera, os cavalos relincharam todos juntos. O Negrinho montou no baio e tocou por diante a tropilha, até a coxilha que o seu senhor lhe marcara.
E assim o Negrinho achou o pastoreio. E se riu...
Gemendo, gemendo, o Negrinho deitou-se encostado ao cupim e no mesmo instante apagaram-se as luzes todas; e sonhando com a Virgem, sua madrinha, o Negrinho dormiu. E não apareceram nem as corujas agoureiras nem os guaraxains ladrões; porém pior do que os bichos maus, ao clarear o dia veio o menino, filho do estancieiro e enxotou os cavalos, que se dispersaram, disparando campo fora, retouçando e desguaritando-se nas canhadas.
O tropel acordou o Negrinho e o menino maleva foi dizer ao seu pai que os cavalos não estavam lá...
E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou...
***
O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos, a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho... dar-lhe até ele não mais chorar nem bulir, com as carnes recortadas, o sangue vivo escorrendo do corpo… O Negrinho chamou pela Virgem sua madrinha e Senhora Nossa, deu uni suspiro triste, que chorou no ar como uma música, e pareceu que morreu...
E como já era noite e para não gastar a enxada em fazer uma cova, o estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho na panela de um formigueiro, que era para as formigas devorarem-lhe a carne e o sangue e os ossos... E assanhou bem as formigas, e quando elas, raivosas, cobriam todo o corpo do Negrinho e começaram a trincá-la é que então ele se foi embora, sem olhar para trás.
Nessa noite o estancieiro sonhou que ele era ele mesmo, mil vezes e que tinha mil filhos e mil negrinhos, mil cavalos baios e mil vezes mil onças de ouro… e que tudo isto cabia folgado dentro de um formigueiro pequeno...
Caiu a serenada silenciosa e molhou os pastos, as asas dos pássaros e a casca das frutas.
Passou a noite de Deus e veio a manhã e o sol encoberto. E três dias houve cerração forte, e três noites o estancieiro teve o mesmo sonho.
***
A peonada bateu o campo, porém ninguém achou a tropilha e nem rastro.
Então o senhor foi ao formigueiro, para ver o que restava do corpo do escravo.
Qual não foi o seu grande espanto, quando chegado perto, viu na boca do formigueiro o Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita, sacudindo de si as formigas que o cobriam ainda!... O Negrinho, de pé, e ali ao lado, o cavalo baio e ali junto a tropilha dos trinta tordilhos... e fazendo-lhe frente, de guarda ao mesquinho, o estancieiro viu a madrinha dos que não a têm, viu a Virgem, Nossa Senhora, tão serena, pousada na terra, mas mostrando que estava no céu... Quando tal viu, o senhor caiu de joelhos diante do escravo.
E o Negrinho, sarado e risonho, pulando de em pêlo e sem rédeas; no baio, chupou o beiço e tocou a tropilha a galope.
E assim o Negrinho pela última vez achou o pastoreio. E não. chorou, e nem se riu.
***
Correu no vizindário a nova do fadário e da triste morte do Negrinho, devorado na panela do formigueiro.
Porém logo, de. perto e de longe, de todos os rumos do vento, começaram a vir notícias de um caso que parecia um milagre novo...
E era, que os posteiros e os andantes, os que dormiam sob as palhas dos ranchos e os que dormiam na cama das macegas, os chasques que cortavam por atalhos e os tropeiros que vinham pelas estradas, mascates e carreteiros, todos davam notícia - da mesma hora - de ter visto passar, como levada em pastoreio, uma tropilha de tordilhos, tocada por um Negrinho, gineteando de em pêlo, em um cavalo baio!…
Então, muitos acenderam velas e rezaram o Pai-nosso pela alma do judiado. Daí por diante, quando qualquer cristão perdia uma cousa, o que fosse, pela noite velha o Negrinho campeava e achava, mas só entregava a quem acendesse uma vela, cuja luz ele levava para pagar a do altar da sua madrinha, a Virgem, Nossa Senhora, que o remiu e salvou e deu-lhe uma tropilha, que ele conduz e pastoreia, sem ninguém ver.
***
Todos os anos, durante três dias, o Negrinho, desaparece: está metido em algum formigueiro grande, fazendo visita às formigas, suas amigas; a sua tropilha esparrama-se, e um aqui, outro por. lá, os seus cavalos retouçam nas manadas das estâncias. Mas ao nascer do sol do terceiro dia, o baio relincha. perto do seu ginete; o Negrinho monta-o e vai fazer a sua recolhida; é quando nas estâncias acontece a disparada das cavalhadas e a gente olha, olha, e não vê ninguém, nem na ponta, nem na culatra.
***
Desde então e ainda hoje, conduzindo o seu pastoreio, o Negrinho, sarado e risonho, cruza os campos, corta os macegais, bandeia as restingas, desponta os banhados, vara os arroios, sobe as coxilhas e desce às canhadas.
O Negrinho anda sempre à procura dos objetos perdidos, pondo-os de jeito a serem achados pelos seus donos, quando estes acendem um coto de vela, cuja luz ele leva para o altar da Virgem Senhora Nossa, madrinha dos que não a têm.
Quem perder suas prendas no campo, guarde esperança: junto de algum moirão ou sob os ramos das árvores, acenda uma vela para o Negrinho do pastoreio e vá lhe dizendo -Foi por aí que eu perdi... Foi por aí que eu perdi... Foi por ai que eu perdi!...
Se ele não achar… ninguém mais.

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segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Ler devia ser proibido!


Estimulando o Hábito Saudável da Leitura

E refletindo com Guiomar Grammont

Retirado do blog: http://atorremagica.blogspot.com/


Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social. Não me deixam mentir os exemplos de Dom Quixote e Madame Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram, meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.
Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação.
Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas para que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais?
Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem, necessariamente, ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.
Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebidas. É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas.
Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, pode levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias, pode estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.
Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verosimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista de sua liberdade. O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projetos, manuais, etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incômodas. É esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do que a leitura?
É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns, jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metrôs, ou no silêncio da alcova… Ler deve ser coisa rara, não para qualquer um.
Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos. Para obedecer não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil.
Além disso, a leitura promove a comunicação de dores e alegrias, tantos outros sentimentos… A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna coletivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.
Ler pode tornar o homem perigosamente humano.

Krika

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